São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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Fernanda traz a SP seus dias felizes

DANIELA ROCHA
EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

Peça: Dias Felizes
Texto: Samuel Beckett
Direção: Jacqueline Laurence
Elenco: Fernanda Montenegro e Fernando Torres
Quando: estréia dia 5, às 21h (de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 17h; até 11 de fevereiro)
Onde: Teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 011/256-2281)
Ingresso: R$ 20 (quinta, sexta e domingo) e R$ 25 (sábado)

Depois de correr várias cidades brasileiras e Lisboa com a peça "Dias Felizes" durante o ano de 95, o casal Fernanda Montenegro e Fernando Torres traz o espetáculo a São Paulo para temporada do próximo dia 5 até 11 de fevereiro no teatro Sesc Anchieta.
Há 25 anos, Fernanda Montenegro encenava "Dias Felizes" como uma reverência à contestação e à liberdade de expressão. Hoje, ela retoma o texto, que ainda considera desafiador, pelo prazer de contracenar com Fernando, "seu par" há 45 anos.
"Neste espetáculo se buscou o que temos de vivência nossa que possa ser usado com um artista da dimensão do Beckett. 'Dias Felizes' é um dos textos mais bonitos que já encenei na minha vida.", afirmou em entrevista à Folha.
É a história de um casal que resiste à erosão do dia-a-dia através de um esforço de memória. A mulher, Winnie, relembra os fatos de seu passado feliz enquanto se afunda em um monte de areia. "O passar dos anos sobre si mesmo é a nossa única realidade", disse.
Em "Dias Felizes", Beckett se diverte com as situações em que coloca o ser humano em um humor denso. "O público gosta de ator falando", afirmou. Leia a seguir trechos da entrevista.
*
Folha - Por que a apresentação em São Paulo ficou para 96?
Fernanda Montenegro - Por causa do teatro. Está muito difícil ter teatro disponível em São Paulo. O Sesc Anchieta, que conseguimos, tem um palco maravilhoso, é um teatro que não é muito grande, é pequeno, como pede o nosso texto.
Folha - Sua montagem de "Dias Felizes" pede um teatro menor para maior proximidade com o público?
Fernanda - Sem dúvida. Mas se você se propõe a ir pelos caminhos do mundo, muitas vezes bate em espaços que são maiores. Chegamos a fazer este espetáculo em Brasília com 1.500 pessoas cada sessão. No Centro de Convenções, no Recife, apresentamos em um teatro de 2.400 lugares. Mas o ideal é o espaço onde haja proximidade dos nossos rostos.
Folha - O que conta mais em uma montagem de Beckett: a expressão do ator ou a manutenção da integridade do texto?
Fernanda - Beckett vai a extremos de pôr só uma boca em cena, mas é uma coisa fortíssima, apesar de ser apenas uma boca iluminada falando sem parar. Acho que ele imobiliza muito os seus atores para que valha unicamente a medida cívica do ator dando conta disso.
Folha - Você já montou esse texto em 1970, contracenando com Sadi Cabral. Por que resolveu remontá-lo?
Fernanda - Samuel Beckett é o grande autor deste século e deste fim de milênio. Na montagem em 1970, estávamos em plena ditadura e o texto tomou um rumo altamente político. Foi um período de grande baratinação política. Fizemos temporada popular no Rio e fomos a Brasília.
O público lotou as sessões porque sentia que ali tinha uma conotação de resistência à repressão da liberdade de expressão. A censura da época queria proibir o texto. Com muita luta, eles classificaram a montagem própria apenas para maiores de 18 anos porque eles disseram que ali tinha alguma coisa que eles não percebiam claramente, mas que era subversiva.
Folha - O que muda para você encenar esse texto hoje?
Fernanda - Mudam 25 anos a mais, muda uma certa metalinguagem, na medida em que o Fernando e eu formamos um par há 45 anos. Os atores já não são jovens, como Beckett pede na peça. Esse foi um texto que sempre pensei em retomar um dia com o Fernando. Não faria com outro ator.
Acho interessante esse apostar na própria vida e esperar do outro algum ombro onde se possa encostar uma cabeça. E, ao mesmo tempo, saber se isso a qualquer hora se romperá, a qualquer hora deixará de estar ali. Como diz Guimarães Rosa, viver é perigoso.
Beckett é isso o tempo inteiro. Existe o respirar e, por isso, o viver e, por isso, o resistir mais um segundo. Você acorda, a vida se apresenta no pior, mas, se não fosse essa gravidade, você sairia flutuando como uma pluma. O que é uma pluma? É nada.
Folha - Como você compôs Winnie, a sua personagem?
Fernanda - Faço esta personagem sem melancolias, sem melodrama, porque já é tão forte, densa e explícita na linguagem do Beckett. Vejo nesta personagem um grande poder de resistência a qualquer possibilidade de fim.
Folha - Com Willie, o personagem masculino, também é assim?
Fernanda - Ele é mais matreiro, se esconde mais. É uma participação pequena, mas com grande final. Ele se apresenta aos poucos. Nunca se sabe se ele vai responder ao que ela pergunta ou se não. Ele faz um jogo de carrasco e vítima com ela. Como é na vida.
Folha - A Winnie explora o lado feminino, enquanto Willie, o masculino?
Fernanda - Sem dúvida. O Beckett fez esta peça para uma atriz de formação acadêmica e põe nela muito do que a gente acha que mulher é, ou seja, aquele ser que precisa falar. A vitalidade dela está no poder falar, tenha alguém para ouvir ou não. Enquanto fala, vive. Isso é muito característico das mulheres.
Os homens têm uma vida, na sua domesticidade, muito calada. São falantes da porta da rua para fora. Mas, dentro de suas casas, os homens são muito mais silenciosos, e cada vez os anos silenciam mais os homens. Acho que cada vez os anos fazem as mulheres falarem mais.
Folha - Os extremos tendem a ficar cada vez claros?
Fernanda - Exatamente.
Folha - Na peça, Willie tem paciência para ouvir Winnie?
Fernanda - Ele faz um jogo cruel com ela. Ou às vezes ele não pode responder porque também está numa situação extremada. Nunca nada no Beckett é definitivo. Há sempre uma dubiedade. Você nunca sabe se ele não responde porque está torturando ela, ou se é porque está sem possibilidade de emitir um som. No fim ele se mexe, se apresenta para ela.
Folha - O que leva Winnie a se apresentar?
Fernanda - É outra dubiedade. É outro mistério do Beckett. Não se sabe se ele vem para beijá-la ou para pegar um revólver e se matar ou matá-la. A vida é sempre uma dubiedade. Por mais que você conviva com o ser humano, ele é sempre um mistério absoluto para você e você para esta pessoa também. Ninguém domina ninguém. Estes são personagens emblemáticos.

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