São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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Oxímoros precisam de novas "pa-larvas"

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Oxímoros. Na falta de palavras novas, usamos oxímoros hoje em dia.
Sabem o que são? O oxímoro é a figura de retórica mais útil no Brasil atual. Oxímoros são como bichos de duas cabeças, ou como centauros da sintaxe. Os oxímoros são o recurso em que palavras contraditórias se unem para chegar a um terceiro sentido. Assim como fez Almeida Garret com "silêncio eloquente" ou Cecilia Meireles com "inocente culpa" ou mesmo eu, pobre de mim, que já sou um oxímoro vivo, ambivalente, torturado entre eu e mim mesmo.
Mas, por que esta súbita necessidade de oxímoros? É que hoje os fatos estão superando as interpretações. Não há palavras que dêem conta das novas coisas. O mundo aboliu certezas. As palavras novas gemem por existir. Seriam "pa-larvas", girinos de gias verbais? Perdoem meu baixo Joyce.
Sempre achei que Joyce enlouqueceu ao escrever o "Finnegans Wake". O bicho pirou nos trocadilhos. Mas hoje, onde está você, Joyce, agora que precisamos de "pa-larvas"(!) para descrever o Brasil? Sim; entre casulo e borboleta (palavras-crisálidas?), temos de usar outros termos para descrever a loucura que nos tomou.
O lema do atual governo, por exemplo, já é um oxímoro.
FHC pretende realizar uma "utopia possível". Utopia é um lugar que sempre está mais além, um movente chão. FHC quer uma cruza entre o delírio português messiânico e o duro realismo americano. Estamos tentando injetar método em nossa loucura. Teremos o quê? Uma desesperança otimista ou esperança sem saída? Gramsci falava em pessimismo-otimista. Ele já era um homem-oxímoro, falando de liberdade dentro da prisão.
Que outra palavra para nomear a idéia atual de "felicidade"? Ser feliz hoje é excluir o mundo em torno, como grades em edifícios de luxo. Ser feliz é pelo "não". Hoje no Brasil é "não" ver a miséria, "não" se preocupar com o país, "não" acreditar em nada.
Felicidade=alienação. Que nome para este lusco-fusco que seria uma boa vida brasileira. "Triste alegria"? Ou "alegre sofrimento?" Ser feliz: nada ver, nada ouvir. Ouvidos moucos, antolhos, visão seletiva. Neo-felicidade? Ou in-feliz-cidade?
A miséria foi útil. Diante dela, tínhamos a vantagem da compaixão. Gostávamos de ter pena dos infelizes. Hoje, diante da solução impossível, nossa compaixão virou raiva, com leves tintas de pena.Ficamos humilhados por nossa impotência. O pobre virou um estraga-prazeres. Como chamar o sentimento de tédio e medo diante de um menino de rua na janela do carro? "Compaixão" virou coisa antiga.
Ódio e pena? Contra-paixão? Anti-amor?
Que nome daremos ao desejo de extermínio que começa a brotar nos cérebros? Exterminar bandidos, exterminar excluídos, exterminar superpopulação? Quantas vezes desejamos que os miseráveis desencarnassem, virassem luz, como no "Brejo da Cruz" do Chico Buarque? Que nome daremos à razão exterminadora que se organiza? "África addio"? "New Auschwitz", "Hello Treblinka?"
Que oxímoro para a paralisia do político brasileiro que vai muito além do conservadorismo, do desejo do fixo? Que nome dar a este melaço da alma que odeia as reformas e o novo? O Jair Soares, por exemplo, é reacionário. Mas, que medula, que linfa ancestral o energiza, que visgo brasileiro é esse que anima os empatadores do progresso? É uma pasta feita de egoísmo, preguiça, escravismo colonial que alimenta os pés dessa direita. Que nome dar? A gosma do Mesmo?
Como chamar o sanduíche misto do público e privado no Brasil? Não há mais a divisão tradicional, casa-rua, privado e público. O público e privado estão imbricados num DNA em espiral, uma espiroqueta pálida que faz a história andar em círculos viciosos. Ex: o rancor de Chelotinho, um policial humilhado por Julio Cesar durante a campanha de FHC, leva-o a grampear o telefone do diplomata, levando à demissão o único cara que tocava bem a reforma agrária e acaba impedindo o sistema de radares na Amazônia, grilando o Clinton e permitindo que vários corruptos se lavassem denunciando a corrupção, ganhando o título novo de "pós-ladrões"? Como nomear este filme? "Operação Manaus" ou "Como era boa a minha zona franca"?
Como nomear a simbiose entre mídia e política? A notícia cobre os fatos ou os fatos obedecem ao desejo de notícia? O que é imprensa e o que é história? O que é virtual e real nesta terra? "Media-politics"? Polimídia? Poli-show? Daí surge a política-balé, um tipo de dança que finge governar. O poder não tem mais poder diante das coisas. Mas é preciso manter as aparências. A política como teatro. "Dancing days": Corpo de baile do Congresso? Malabaristas do Executivo?
Como nomear, digamos, o sexo? Neo-sexo? O sexo vestiu camisa. Na hora do amor, pensamos na morte. Na hora da nudez, usamos o terrível capote inglês, que cria o medo na hora da alegria.
Amor-medo? Camisa de Vênus protegia contra o excesso de vida. Hoje, como chamá-la? A camisinha de Nemesis, camisa de Tanatos? Diante da resistência à mudança social, na intelligentsia, nascem tipos novos: o gênio inútil e o neo-cretino. O gênio inútil sabe tudo e não consegue fazer nada. O neo-boçal não sabe nada e age mais. E os novos tipos políticos? Neoliberal, velho radical. Neoconservador, progressista-reacionário, direita esquerdista e esquerdismo de direita?
E o nojo-amor? Em política de alianças, temos frente única PFL-PSDB, PT-evangélicos, temos o nojo-amor, uma união de contrários que "hurlent de se trouver ensemble" (sempre quis usar este galicismo: coisas que uivam por estarem juntas).
E como nomear a aula de pragmatismo que a miséria armada nos dá? A miséria reformando a sentimentalidade branca? O Comando Vermelho ensina a rude cara da verdade, enquanto a burguesia se gasta em lágrimas e os intelectuais acreditam em símbolos. Seria o quê? Crime de vanguarda, neo-crime, lumpen-praxis?
Que nome daremos a este grande bucho informe que a miséria cria nas periferias? Não são mais favelas. Anti-cidades? Como chamar esta nova língua, nova ética, este novo "bem" no mal? Não é o proletariado; é o Cristo da miséria vindo ao mundo? Como? Anti-Messias? É uma "razão" que a loucura produz, os restos que sobram do não. É uma novi-língua feita de grunhidos, afasia, novos sentidos de uma miséria desconhecida. Há um outro país da fome eterna, como um grande uivo ilógico que está além da piedade, do bom senso, invencível por qualquer progresso? Seria o quê? O Bucho? A Coisa?
E neste ano novo? Seremos todos livres-prisioneiros, inocentes-criminosos, tristes-palhaços, ridículos-indivíduos, detritos de big-bang? Somos cada vez mais oxímoros.

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