São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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O neoliberalismo na contraprova

JOSÉ GENOINO

Uma das discussões clássicas da teoria política do século 19 dizia respeito às afinidades e/ou incompatibilidades entre capitalismo e democracia. Marx, entre outros, achava que os dois não podiam conviver harmoniosamente e a história mostraria a sobrevivência de um ou de outro. O século 20, principalmente o pós-guerra, montado sobre o "Welfare State", demonstrou que a convivência é possível e o fracasso do comunismo reforçou suspeitas de que a democracia só poderia sobreviver com o capitalismo. Mas a história é pródiga em desmentir lógicas e veredictos fatais que são emitidos em seu nome. O bom relativismo e a sensatez indicam que não há nada de definitivo: o capitalismo pode muito bem conviver com a democracia, como pode gerar tendências de sua destruição.
O capitalismo democrático -se o assimilarmos à Europa, EUA e Japão-, de fato, gerou, no pós-guerra, desenvolvimento econômico associado ao bem-estar, distribuição de renda e proteção dos cidadãos contra os desequilíbrios sociais. Mas se a democracia for compreendida em seu sentido amplo como democracia política, econômica e social ou como sociedade de equilíbrio, pode-se dizer que neste final de século o capitalismo civilizado está cedendo o lugar ao capitalismo selvagem e o individualismo ligado à afirmação das liberdades individuais e dos direitos humanos está perdendo o embate para o individualismo sórdido, que desmonta os valores do solidarismo e mergulha Estados, empresas e indivíduos numa competição sem freios que lembra a "guerra de todos contra todos" do Estado de natureza hobbesiano.
As novas tecnologias geraram não só novas formas de produzir, mas tiveram impactos impressionantes sobre a organização da produção e as estratégias de competitividade. Produziram uma nova onda de centralização de capitais, principalmente no setor financeiro, que ramifica suas atividades com grande velocidade em qualquer parte do mundo onde as melhores oportunidades de lucro se lhes apresentam. Os promotores do individualismo sórdido são milhões de novos empreendedores, os empresários da terceirização, autonomizados e automatizados, os gerentes da reengenharia nos métodos de trabalho e de direção empresarial.
O Estado está definhando a olhos vistos em sua atividade econômica. No rastro dessa nova realidade afirmou-se a hegemonia da ideologia neoliberal propalando a excelência do mercado e do novo individualismo. As políticas distributivas, previdenciárias e fiscais e as políticas sociais do Estado são vistas e combatidas como sinônimos de ineficiência e de limitação da liberdade individual. As consequências nefastas de todo esse processo têm se apresentado como aumento de desemprego, declínio econômico de setores e regiões, aumento da desigualdade etc. O Estado, combatido pelos bem-sucedidos e integrados, mostra-se cada vez mais inerte na execução de políticas públicas capazes de deter a precarização do emprego e o aumento da degradação social. Estamos vivendo a era dos mercados, onde os paradigmas da eficiência e competitividade representam a nova ética e, somados aos impactos das novas tecnologias, movimentam forças produtivas fantásticas e ao mesmo tempo destroem todo o sentido e o direito social construído na era do "Welfare State".
Mas é na política onde começam aparecer os primeiros abalos na hegemonia neoliberal. Ressalve-se que grande parte das novas realidades e dos novos problemas não são resultados do neoliberalismo. São produtos, isso sim, de movimentos objetivos. Mas a política existe exatamente para que os seres humanos não se tornem idiotas da objetividade ou dos mercados. O neoliberalismo é uma ideologia legitimadora do novo "status quo" e na medida em que influencia decisões de Estado e governo não deixa de produzir efeitos reais. A crise do México, os problemas enfrentados pelos processos de estabilização nas economias emergentes, as vitórias eleitorais dos ex-comunistas em países do Leste europeu e na Rússia e a greve contra a reforma previdenciária na França representam uma série de sinais pontuais de que as sociedades começam a reagir politicamente contra o desmonte social.
É esse precisamente o ponto e o momento de retomada de uma política renovadora de esquerda. Não se trata nem de retornar ao comunismo autoritário e nem de fixar-se sobre o que sobra do "Welfare State". A esquerda deve reconhecer, imperiosamente, a necessidade de reformas. É verdade que o estatismo produziu burocratismo, corporativismo, rendas monopólicas privadas a partir de decisões públicas, ineficiência e estrangulamento da democracia. É verdade também que hoje não se justifica mais a presença do Estado em vários setores da economia. Mas o Estado não pode sucumbir como principal agente da instituição e da garantia da ordem normativa e jurídica da sociedade. O Estado deve reforçar, sob novas formas, as suas funções de promotor do bem-estar social e da sociedade de equilíbrio, com políticas positivas de garantia dos direitos humanos.
Para salvar o capitalismo, o neoliberalismo parece não apenas estar disposto a sacrificar os direitos sociais, mas a própria democracia. Contra o simples desmantelamento do Estado social, a esquerda deve reagir propondo reformas modernizadoras que aumentem a eficiência do Estado e que resgatem sua função de promotor da justiça social, sem que ele se torne um peso demasiado para a sociedade. Contra as políticas neoconservadoras que visam suprimir direitos e restringir liberdades, a esquerda deve propor a criação de uma nova esfera pública que represente o aumento do controle da sociedade sobre o Estado, ampliando a participação democrática dos cidadãos nas decisões que lhes dizem respeito. O que importa perceber é que o novo projeto da esquerda não só deve defender o consenso em torno da democracia, mas propor a sua renovação e o seu aprofundamento.

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