São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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(Con)federação confusa

MARIO CESAR FLORES

Ressalvados os períodos de centralização autoritária, como foram o Estado Novo e o regime de 64, nosso modelo de associação política desde a proclamação da República tem sido a Federação, que a Constituição de 1988 classificou como cláusula pétrea. Alguns cientistas políticos e historiadores põem em dúvida o modelo, caracterizando-o como uma farsa federativa em que São Paulo e Minas, protagônicos, temperavam (temperam?) a retórica federal de direito com o sal unitário de fato; nesse contexto, a Revolução de 32 teria sido a reação de São Paulo à perda de poder para o ideário centralizador e autoritário de 30.
Efetivamente, até os 1980 o Brasil republicano oscilou entre a Federação controlada por Estados fortes e a centralização autoritária. Mas os últimos anos nos sugerem ter chegado a hora de considerar a hipótese de que nossa Federação está sendo lentamente "despetrificada" pelo vírus confederativo. Por que e como está acontecendo isso? Trata-se de tendência boa ou má?
O mundo vive neste fim de século a euforia democrática proporcionada pela prosperidade dos anos 60 e 70 e seu quase pleno emprego, que apressaram a exaustão dos regimes autoritários de direita e esquerda, comuns desde os 1920 até o período crítico da Guerra Fria. Não se sabe o quanto durará a euforia, mas ela é forte hoje e com ela as idéias de autonomia local e descentralização.
Em consonância com a época e em reação ao regime autoritário e centralizador precedente, alçamos a autonomia e a descentralização a níveis discutíveis porque, se por um lado os problemas locais são melhor manejados "localmente", por outro muitos dependem de medidas nacionais que exigem sacrifícios solidários. Criamos uma situação curiosa: deu-se aos Estados uma autonomia incoerente com suas capacidades e muito poder a nível nacional por meio de suas bancadas no Congresso, constitucionalmente capacitado para condicionar a administração federal em função de interesses estaduais -o que compele a União a compartilhar as consequências de erros praticados com autonomia. Essa situação deveria descredibilizar o ideal democrático da autonomia e descentralização, mas não é isso que acontece: os Estados ricos, que estão deixando de ter os demais como mercado cativo (abertura econômica), querem reduzir a carga da unidade solidária, e os mais pobres querem associar a autonomia confederativa para o gasto e a solidariedade federativa, para sua cobertura...
Outra influência ponderável sobre a diluição da solidariedade federal é a da globalização (ou regionalização) econômica que, como a democracia, também não pode ser tida como definitiva; aliás, qualquer "acidente de percurso" grave na economia terá reflexos na política, à semelhança do que ocorreu nos 1930, quando o quase colapso do capitalismo gerou regimes intervencionistas e centralizadores.
No regime protecionista de substituição de importações todo o Brasil dependia de São Paulo (aqui figurando o Brasil moderno). A abertura comercial está mudando essa situação, mas, em contrapartida, São Paulo se sente menos comprometido com o atraso e mais ligado ao mercado internacionalizado. O corolário é o aumento dos ressentimentos que separam os ricos dos pobres e o relaxamento da solidariedade interna. Não é à toa que um eminente líder nordestino classificou o Mercosul como um acordo de cujas vantagens o Norte/Nordeste estariam alijados! Podemos chegar ao ponto em que, ressalvado um ou outro assunto, como a integridade e a defesa nacional (por quanto tempo mais?), vamos acabar perdendo o sentido de unidade, comprometido por egoísmos e mágoas regionais.
Também contribui para o afrouxamento dos elos internos a redução do peso relativo de uns tantos instrumentos da unidade nacional, entre eles as Forças Armadas, o planejamento centralizado, certos valores geopolíticos tradicionais (soberania e fronteiras, para assuntos tidos como de interesse global -meio ambiente, terrorismo, drogas) e a Igreja Católica que, apesar de universal, foi um dos alicerces da nossa unidade. Essa tendência abre espaço para agentes desagregadores: seitas religiosas, mídia sensacionalista, criminalidade e delito epidêmico, organizações não-governamentais transnacionais, identidade étnica e outras identidades sociais.
Há que se avaliar onde se situa o modelo de associação política da conveniência brasileira com o realismo que evite a inócua resistência à maré da história, mas também com a responsabilidade que impeça a adesão aventureira a modelos de descentralização e autonomia prematuros. Em particular, há que se considerar que a globalização econômica precisa ser controlada por um Estado central forte, a serviço de uma unidade nacional sadia. À sombra de uma modernidade democrática entendida como fragilidade do poder central e de seus instrumentos diante dos poderes locais, vamos acabar nos transformando numa (con)federação confusa (direito e poder em desarmonia), sem força para controlar os passos da inserção do Brasil na nova ordem do mundo e para melhorar a ordem social interna. Nada é imutável e a evolução é a norma histórica, mas por ora não há substituto eficaz para o Estado-Nação, sem ambiguidades paroquiais (con)federativas.

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