São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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Deus oculto

ANDRÉ LARA RESENDE

É-nos cada vez mais difícil crer no que quer que seja: sistemas econômicos, organizações sociais, credos políticos, valores, tudo parece desmoronar a olhos vistos neste final de milênio. Mas nada, nesta idade da dúvida, é mais difícil de se acreditar do que num Deus bom, invisível e todo-poderoso.
A observação foi feita pelo repórter que entrevistava um dos bispos franceses reunidos em Lourdes. Desde 1858, milhares de curas clinicamente inexplicáveis foram observadas em Lourdes; 65 foram oficialmente reconhecidas pela Igreja Católica como milagrosas. Mas o ritmo parece ter se reduzido. Menos de 20 foram reportadas nos últimos 50 anos, e nenhuma desde 1976.
Por que um número tão grande e crescente de pessoas vão a Lourdes, hoje o mais importante centro de peregrinação cristã, em busca dos milagres que andam tão escassos?
"É o que eu me pergunto constantemente", respondeu o bispo ao jornalista que esperava alguma forma de confrontação ideológica. "Mais de 5 milhões de pessoas de 150 países vêm todo ano a Lourdes. Mais da metade delas afirmam não ter fé. Por que então elas se dão ao trabalho de vir a um lugar que, em tese, nada lhes diz?"
O próprio bispo responde: "Nossa época perdeu o sentido da vida; as pessoas procuram Deus sem saber que é a Deus que procuram. Com todos os problemas do mundo, pode parecer ridículo falar de esperança, mas as pessoas aqui encontram esperança. É uma realidade. Não apenas esperança, mas também milagres. Os milagres acontecem a toda hora em Lourdes".
A um padre sul-africano que atende os peregrinos de língua inglesa, o repórter perguntou o que lhe atraíra em Lourdes. "Curas milagrosas", foi a resposta. "Mas diante da realidade de Lourdes, essas curas perdem importância. As pessoas adquirem um novo sentido de vida em Lourdes. O que mais ouço no confessionário é a afirmação de que não se está feliz, de que se está deprimido. As pessoas estão à procura de uma vida melhor."
À procura de uma vida melhor, como bem sabe a publicidade, somos todos clientes potenciais do mais novo lançamento imobiliário, do último modelo de automóvel, do livro de auto-ajuda. Daí ao esoterismo e ao charlatanismo é um passo.
Li o artigo sobre Lourdes no "Financial Times", poucos dias depois de assistir à fita da Igreja Universal do bispo Macedo. Sua igreja é uma empresa moderna: adota um sistema de remuneração variável baseado no desempenho individual, promove seminários de treinamento interno em balneários, e estende suas atividades além-fronteiras. Mas, antes de tudo, descobriu um produto extraordinário: vende esperança. Observe-se que não vende objetivamente nada, nenhum resultado, apenas esperança.
A fita impressiona. Há indícios de deboche e cinismo além do razoável. O sobrenatural costumava exigir pompa e circunstância. A Igreja Universal dispensou-as. Novos tempos, novas técnicas, novos métodos.
Mas a quem é dado o direito de julgar os intérpretes da transcendência neste mundo?

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