São Paulo, quarta-feira, 3 de janeiro de 1996
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Filme oculta rabo preso com a tecnologia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nunca fui muito entusiasta dos livros de ficção científica. "Fundação", de Isaac Asimov, parei na página 40. Aquilo ia dar muito trabalho. De Ray Bradbury, tentei ler um romance antigo, "Areias de Marte"". Mas era tão antigo que explicava ao leitor como é a sensação de perda da gravidade numa viagem espacial.
Mas há um livro de que me lembro sempre, e deve ter sido escrito na década de 50. Chama-se "Cidade", e seu autor é Clifford D. Simak. É um misto de coletânea de contos e de romance. Cada conto continua o anterior, a uns dois ou dez mil anos de distância.
À medida que se projeta no tempo, a imaginação do autor adquire formas alarmantes. No terceiro ou quarto capítulo, já estamos às voltas com uma civilização de cachorros, em pleno vigor na superfície terrestre. Um cientista maluco, muito tempo antes, ensinara os cachorros a falar. No momento da história, eles consideram puro mito a idéia de que, há milênios, seres humanos habitaram a Terra. Ridículo.
Mas há dois contos ótimos nesse velho livro de Simak. Um deles narra a última expedição dos homens a Júpiter. Sabe-se que a superfície de Júpiter é das mais turbulentas. Uma lava de magnésio ou de silício gasoso, não sei, dificulta qualquer programa de colonização. Naves espaciais perderam-se nos turbilhões de antimônio, nas fervuras de amoníaco, na gravidade de plutônio em pasta.
Lá vai a última nave espacial terrestre no rumo desse convulso planeta. Os astronautas, entretanto, dispõem de um bom kit de sobrevivência. A tecnologia do século 44 faz com que, no momento de aterrissagem, sejam convertidos numa espécie de ameba gigante, plenamente adaptada às hostilidades do ambiente.
Os astronautas, agora amebiformes, penetram então na atmosfera, ou na superfície de Júpiter. Estão certos de que vão morrer. Mas não. O que sentem, com seu novo corpo jupiteriano, é um prazer inimaginável, sideral. Mergulhar em nuvens de veneno cósmico é sentir a fusão do corpo em energias jamais vistas. Cada metro para a frente aprofunda o êxtase.
Um astronauta se lembra de que é preciso avisar a Terra de que Júpiter é o paraíso. Lembra disso, mas não consegue voltar à nave. Não consegue retroceder do seu enlevo. Quer voltar, quer voltar, mas, ah, fumaças de cobalto, ah, nuvens de nióbio, ah, corpo de ameba... ele submerge.
Na Terra, dão a missão por fracassada. Consideram que os astronautas estão mortos. E ninguém foi a Júpiter nunca mais.
O episódio lembra um pouco uma passagem da Odisséia, sobre o país dos comedores de lótus. Ninguém quer sair dali, exceto o heróico Ulisses.
Mas o outro conto de Simak não é tão místico. Fala de uma sociedade em que os meios de comunicação estão avançadíssimos: o indivíduo nem precisa sair de casa para comunicar-se com seus semelhantes. As cidades, essa forma primitiva de aglomeração, desapareceram. O protagonista sofre, contudo, de uma doença, a agorafobia. Não aguenta o contato com seus semelhantes. Está de tal modo acostumado à comunicação à distância - telefones, telegramas, fax, computadores, que não suporta a visão de gente junta.
Para uma história escrita na década de 50, Simak acertou em cheio. O contato pessoal se reduz hoje em dia. O supermercado já foi uma invenção impessoalizante. Existem senhoras à moda antiga que se recusam a usar o telefone.
Tudo isso para falar de um filme que estreou sexta-feira, chamado "Denise Está Chamando", em cartaz no Cinesesc.
É um filme bem-feito, engraçado, interessante, bom. Há uns sete ou oito personagens, que só se comunicam por telefone. Ninguém tem ânimo ou coragem para encontrar ninguém. A morte, o sexo, a amizade, a reprodução, tudo acontece sem que ninguém se toque. Na primeira cena, uma moça joga fora as comidas que tinha preparado para a festa da véspera: ninguém apareceu.
Ninguém consegue aparecer. Todos se desculpam, todos conversam, todos se encontram, só por telefone.
O filme é engenhoso, porque mantém o interesse do espectador ao longo de intermináveis chamadas e conversas. Desenvolve histórias de amor e morte só através de diálogos à distância.
É uma obra virtuosística, no que tem de clímaxes, de suspenses, de mistura entre humor e tragédia. Mas é também um daqueles filmes em que a gente sai dizendo: interessante. Muito interessante. Mostra um problema muito atual.
O problema, claro, é aquele do conto de Simak. Quanto mais eficientes os meios de comunicação, mais distância entre as pessoas.
Só que a denúncia é tão óbvia, e a "mensagem" do filme tão transparente, o roteiro tão "redondo", tão perfeito na junção de realismo e de alegoria, que a reação do espectador é diminuta. Saí pensando: "Muito bem. E daí?"
Todos nós sabemos o quanto um recado na secretária eletrônica pode nos livrar de um encontro embaraçoso. Há técnicas para isso. Você pode deixar recados nas horas em que sabe que a pessoa não está em casa, e ela responde conforme a mesma tática.
Mas por que tanto horror a sair de casa?
"Denise Está Chamando" atribui tudo a uma fascinação pelo trabalho. Os personagens ficam o tempo inteiro diante do computador, trabalhando, e por isso não saem de casa.
A agorafobia de Simak encontra nesse filme uma ilustração bem-humorada. Mas as causas da agorafobia são tratadas superficialmente. Seria preciso tomar o outro conto de Simak como modelo: aquele da viagem a Júpiter, sendo Júpiter, os oceanos de flúor, os abismos de bismuto, a nossa própria casa, o pólo magnético de atração que nos condena a uma vida solitária.
Que atração misteriosa, afinal, exercem os computadores e aparelhos de CD, os telões e os videocassetes, a ponto de nos desinteressarem de sair de casa? O aspecto "grudento" da tecnologia não é abordado nesse filme.
Preocupado em denunciar a "desumanização" do mundo contemporâneo, "Denise Está Chamando" carrega na mensagem, sem simpatizar com tudo o que de fato convida ao isolamento.
O filme oculta, além disso, o rabo preso que tem com a tecnologia. Refiro-me à tecnologia do roteiro. Tudo é perfeito e medido, cronométrico e brilhante na história. Tudo é tecnológico demais, para uma denúncia que preste.

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