São Paulo, quarta-feira, 3 de janeiro de 1996
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Müller fez o mais cruel retrato da Alemanha

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é a primeira vez que Heiner Müller "passou para o lado de lá", mas certamente será a última. O autor e diretor de teatro, que ficou notório na década de 80 por ter ganho status de passageiro livre entre as Alemanhas divididas, morreu no último sábado em Berlim. Ou melhor, é difícil dizer se Müller morreu realmente ou se não resolveu dar uma espiadinha num outro "lado de lá", já que a reunificação de suas amadas e odiadas Alemanhas tinha resultado numa antitragédia tão entediante e burocrática que até anulava aqueles anos de excitação e especulação da Guerra Fria, em que o contrabando de cultura e de espiões era o que de mais interessante havia nas terras de Schiller e Goethe. Na verdade, "passar para lá" não é nenhuma novidade para Heiner Müller, recentemente acusado de ter tido envolvimento com a "stasi", o serviço secreto da extinta Alemanha Oriental. Como Müller se defendeu das acusações? Com as mais irônicas e cáusticas explicação de sempre, típicas de sua dramaturgia e de sua visão niilista a respeito do futuro de sua nação.
Eu conheci Müller em 85, quando nos apresentávamos com Julian Beck num teatro de Frankfurt. Logo depois, dirigi a estréia americana e brasileira de sua peça mais famosa, "Quartett". A fama de Müller alcançou proporções gigantescas na Alemanha recente. Depois de condecorado com o premio Büchner nos anos 80, seu modo áspero e cínico de ver a cultura do mundo influenciou toda uma geração de autores e diretores alemães, de Schlãff até Frank Carstof, hoje figuras dominantes na vida cultural de Berlim junto com Müller. Müller até sua morte dirigia polemicamente o teatro "Berliner Ensemble", onde, coincidentemente, começou sua carreira junto a Bertolt Brecht, na década de 50, como estudioso e tradutor de peças de Shakespeare.
Temo que, junto com Heiner Müller, morra uma tradição recém-instalada na Alemanha: a de forçar uma abertura cultural e linguística num país obcecado pelas suas possibilidades e limitações por causa de seu alto grau de erudição em todos os níveis, através da importação de um dos mais bem-sucedidos mecanismos de exame da modernidade racionalista e do modernismo, ou seja, a experiência semiológica francesa. Müller, assim como Goethe e Büchner, era um apaixonado pelas culturas estrangeiras e sabia, como seus antecessores, incorporar elementos românticos, barrocos e trágicos a uma cultura que vive da aprimoração obcecada de mecanismos racionais. Müller sabia pegar emprestado e aplicar todos os ícones culturais às situações domésticas, travestindo-as de tal forma que se tornavam aberrações, visões quase verídicas e, uma vez transformadas em matéria prima germânica, virariam o mais cruel retrato da mais cruel sociedade moderna, a alemã. Dessa forma, podemos ver sua "Medeamaterial", um apanhado da essência psicológica de Medéia, como uma formalização da "Mãe-Alemanha", aquela que mata seus filhos, ou em "Hamletmachine", um apanhado sobre a dúvida e o excesso de verbo para pouca ação, como uma formalização das jovens alemanhas pós-Guerra, incapazes de tomarem uma atitude real, preferindo ficar na eterna ponderação sobre sua existência frágil e estuprada. A obra de Müller sempre foi um híbrido complexo entre os clássicos existentes e a retórica política que fez de todos os clássicos uma mera ficção mansa. Pode-se dizer que era um autor de manifestos, ora encenáveis, ora não. De qualquer forma, sua caricatura da sociedade de todos os tempos, muito mais erudita e menos cotidiana que seu mestre, Brecht, acabou por transformar a história da literatura numa espécie de catálogo de doenças contagiosas da pele e da mente.
Müller praticamente reduziu o ser humano a sua culpa não assumida. Sua obra foi uma resposta ativa à atividade paralisada de Beckett. Se Beckett falava de menos -pois não achava na escuridão do imenso universo uma motivação ou uma explicação verbal que o retirasse do eterno círculo semântico das palavras e paradoxos revolventes-, Müller falava demais. Seu mecanismo verborrágico fazia seus personagens vomitarem séculos de literatura mal digerida e mal assimilada e coagida por políticos a tomarem sentidos inversos. Heiner Müller usava a literatura para explicar onde o mecanismo humano havia falhado e falharia sempre e retratou, involuntariamente, a máquina modernista, como um veículo de destruição da individualidade, pois abria demais as fronteiras da relatividade de cada ato e cada pensamento, tornando assim muito mais possível a traição e a delação entre amigos e familiares, eternamente sob a desculpa da efemeridade dos tempos presentes. Essa relatividade excessiva, sem dúvida, é a essência do que sobrou do aparato modernista nesse final de milênio, dentro do qual via-se Müller como um cientista desesperado para receber uma oferta de um Mefisto, cujo pacto o levaria a descobrir territórios fora dos confins do eterno conflito ideológico, esse sim, o fantasma que não deixava Heiner Müller dormir. O conflito ideológico era senão uma reorganização de palavras e, na Alemanha de Goethe e da Bauhaus, Müller via como sua missão enterrar esse fantasma em praça pública, assim como Lênin, seu ídolo e objeto de chacota mais antigo.
Nas peças de Müller não há ingênuos. Todos os personagens são culpados a priori e sofrem de má intenção. Todos conhecem seu passado e são incapazes de esquecê-lo, mesmo que por um momento. São todos espiões ou ladrões culturais, chefes de quadrilhas, duques e marquesas que usam terceiros para se satisfazerem, são todos, de uma forma ou de outra, sobreviventes do Reichstag em pleno Terceiro Reich, olhando para o mundo como uma potencial arena romana. Se Müller tivesse escrito um "d'aprés Faust", seu cientista certamente já incorporaria o tratado com Mefisto e estaria em pleno andamento em sua voraz escalada pelo poder eterno, não importando quais formas tomasse emprestado a fim de afirmar sua liderança. Olhando a Alemanha de hoje, soa familiar?
Heiner Müller amava e odiava os povos germânicos. Cansou de ser atacado por sua incansável coragem em achar analogias entre o fascínio alemão por Hitler e a inevitabilidade de repetir seus erros, condenada pela própria estrutura de sua língua. Impossível classificá-lo como sendo de esquerda ou de direita, pois ridicularizava a retórica que transformava qualquer pensamento político em potencial abuso de poder. Müller tornou normal e aceitável a noção de pirataria dramatúrgica, preferindo trabalhar em textos "baseados" em textos clássicos, lidando assim diretamente com a "máquina" ou o "material bruto" da dramaturgia dos tempos, que iriam desde Medéia até Hamlet, desde Büchner e Laclos até os diários de Stálin. Seu grande projeto inacabado era "Germânia 3, a amizade subversiva entre os arquiinimigos, Hitler e Stálin".
Eu estive com ele pela última vez em Berlim, em outubro passado. Apesar de recém-operado, nada indicava que ele estaria a alguns meses da morte. Estava excitado e assombrado com o sucesso de sua última peça, "Arturo Ui" que mostra o fenômeno do eterno fantasma alemão, Hitler, como tendo sido um ato de teatro malfeito que os alemães desejavam. Ele fazia um paralelo hilariante entre o "bad acting" (canastrice) de um rapaz que começa a sua vida como um cachorro (literalmente) nos subterrâneos da Alemanha industrial e falida, e vira um líder dos seres humanos através de seus uivos, muitas vezes ininteligíveis. O povo alemão, obcecado que sempre foi consigo mesmo, prefere muitas vezes não ouvir o significado do discurso, preferindo somente ser convencido pela sua alta decibelagem, pelo volume de seus berros, crítica que leva Müller de volta às óperas de Wagner, de quem dirigiu em Bayreuth, recentemente, Tristão e Isolda, levando os amantes ao cúmulo do estaticismo, não permitindo jamais que se tocassem fisicamente, deixando que as juras do amor eterno não passassem de meros exercícios de retórica, na melhor tradição Schopenhauriana. Müller era, portanto, o perfeito autor para seus compatriotas. Zombava e discutia temas que assombram aquele recém-unificado aglomerado, aquela nação de intransigentes e arrogantes teutônicos.
Em outubro, Heiner se queixava da precariedade financeira e política ("eles querem a minha cabeça") com que tocava a direção do Berliner Ensemble, mas não deu um piu sobre sua saúde precária, voltando a enfiar um daqueles charutos brechtianos em sua boca. Müller sempre ficou perplexo com sua falta de penetração no mercado de teatro do resto do mundo. Era apaixonado pelo Brasil, onde esteve várias vezes, mas sua maior decepção foi não ter conseguido penetração na Inglaterra ou nos Estados Unidos, terra dos autores que mais venerava. No seu túmulo talvez se devesse ler "Aqui jaz assim o mais ilustre passageiro de Checkpoint Charlie, o homem que uniu as Alemanhas duas décadas antes da formal queda do Muro, através daquilo que as Alemanhas mais têm e mais temem em comum: seu passado e seu futuro".

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