São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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A inquisitorial demência do politicamente correto

Logo julgarão errado que o assassino Otelo tenha sido negro

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A praga do "politicamente correto" está se tornando muito mais grave e ameaçadora do que parecia. Embora algumas de suas perversões possam ser aqui consideradas como brincadeira, acreditando que não nos afetarão, convém ficar de sobreaviso. Os prejuízos já causados nos EUA e na Europa do norte, devem ser levados em conta, uma vez que quase tudo que procede desse país e dessa região termina impondo-se sem dificuldade entre nós.
Dias atrás, um amigo que passou o verão na Nova Inglaterra contava-me que essa praga incorre em falsidades, não só no presente como no passado. O quadro do pintor francês William Bouguereau, intitulado "Ninfas e Sátiro", que se encontra num museu de Massachusetts, mostra quatro jovens nuas arrastando o sátiro alegremente para uma lagoa. A obra é de 1873, e seu autor é muito conhecido por suas cenas de suave luxúria e grupos joviais. Ocorre que a encarregada do museu, feminista acirrada, não hesitou em colocar junto ao quadro a seguinte explicação: "As ninfas, cansadas do assédio sexual por parte do sátiro, decidem lançá-lo às águas como castigo". Toda uma iconografia clássica tergiversada, ou melhor, censurada.
Há pouco apareceu outra notícia com sinais de demência: a publicação de uma edição da Bíblia "politicamente correta", levada a cabo por vários teólogos e impressa pela Oxford University Press (que nunca terá o meu perdão). Nessa edição não se menciona Deus Pai, senão Deus Pai-Mãe; não se fala do Filho, mas da "Criança" (porque em inglês a palavra é neutra); a Escuridão não é mais sinônimo de inferno para não ofender as pessoas de pele escura; nas parábolas não há escravos, nem cegos, nem paralíticos, mas "seres submetidos", "com falta de visão e com "diferentes capacidades"; ninguém se sentará à direita de Deus para não incomodar os canhotos, entre os quais me incluo, sem que nunca isto me tenha perturbado. Tudo parece uma grande piada, um engodo, uma paródia e no entanto a coisa está se tornando cada vez mais séria e não me estranharia que toda essa cretinice em questão alcançasse um grande índice de vendas.
Eu não sou crente e para mim a Bíblia não apresenta um caráter mais sagrado que literário, é um dos melhores livros já escritos (Faulkner dizia que lia a Bíblia todas as manhãs para estar em contato com a boa prosa). Para muitas pessoas a Bíblia tem sido um segredo ou continua sendo. Deve-se o conceito moderno de tradução precisamente à Bíblia e à versão conhecida como "os Setenta". Antes, os textos eram vertidos com descuido, de maneira utilitária, para que fossem somente entendidos. Porém não se tinha certeza de que a Bíblia pudesse ser traduzida, uma vez que era a "palavra de Deus" e não cabia aos homens alterá-la.
Conta-se que 70 sábios foram encerrados em suas celas para traduzi-la, e que, ao sair, todas as suas versões coincidiram ponto por ponto, como se os 70 tivessem sido inspirados pelo sopro divino. Certamente aqueles que se dedicaram a esta tradução esmeraram-se ao máximo, conseguindo que cada palavra em hebraico tivesse uma correspondente grega, cada vírgula uma vírgula, e cada ponto um ponto. Inventara-se a fidelidade e até mesmo a literalidade. Introduziu-se na mentalidade humana a sacralização dos textos, o que permite que o Quixote seja imutável e comece dizendo: "Em um lugar da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar...", embora saibamos hoje que "não quero" significava também "não creio". Isto também faz com que as passagens obscuras e misteriosas de Shakespeare permaneçam na sua infinidade de traduções, porque do contrário não seriam Shakespeare.
Acontece que agora é possível alterar o que escreveram outros em épocas menos bregas, afetadas e melindrosas, em que se davam nomes aos bois, e os cegos eram cegos; os velhos, velhos; os gordos, gordos; os escravos, escravos. Algumas mentalidades eufemísticas e puritanas (e que ainda por cima se crêem de esquerda) não apreciam que o mundo tenha sido como tem sido, e que a imagem tradicional de Deus seja masculina. Têm todo direito de tentar mudar esta situação, mas não baseadas em falácias e tergiversando o passado e a história. Esta é uma postura de censura, inquisitorial e totalitária, semelhante a das ditaduras. Em breve, essas mentes julgarão errado que Otelo, um assassino, fosse negro; que Romeu e Julieta, dois suicidas, fossem menores de idade; que Macbeth, outro assassino, fosse instigado por uma mulher, a sua; e que Dom Quixote tivesse um escudeiro "porque todos os homens são iguais". Talvez decidam então fazer versões "politicamente corretas". Continuo e continuarei dando nomes aos bois, a isso eu chamo de inquisição, censura, tergiversação, manipulação, falsidade e sequestro. No momento, a Bíblia já foi vítima de tudo isso.

JULIAN MARÍAS é escritor espanhol, autor de, entre outros, do romance "Coração Tão Branco" (Martins Fontes)
Tradução de LILIA ASTIZ

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