São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Meio milhão de capacetes azuis

RICHARD RORTY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao visitar Belgrado no ano passado, perguntei aos meus anfitriões, todos eles intelectuais antibelicistas, se os Estados Unidos poderiam fazer alguma coisa para melhorar a situação na Bósnia. Responderam-me que não havia nenhum grande problema geopolítico a ser resolvido, que se tratava de um bando de gangues bem armadas e lideradas por chefetes sanguinários. Cada uma dessas gangues age por si só, tem seus próprios fornecedores de armas baratas e ultramodernas. Formam alianças frágeis entre si, ditadas sempre por necessidades passageiras. Nenhuma visa a algo além de pilhagens e estupros para seus soldados e contas bancárias na Suíça para os chefes. Identidade étnica e ideologia têm pouco lugar, a não ser para fins de recrutamento.
A se acreditar nos meus anfitriões sérvios, não haveria grande necessidade de negociações diplomáticas ou sábias reflexões sobre a história dos Balcãs, mas sim um bom contingente de policiais bem armados: a situação na fronteira bósnia não seria tão diferente assim da que impera em algumas partes de Los Angeles ou Chicago. Muita gente decente na ex-Iugoslávia foi forçada por essas gangues a ferir seus vizinhos, tal como acontece àqueles que, em Chicago, já não esperam proteção da força policial. Esses cidadãos de Chicago pagam impostos para um governo que lhes oferece bem pouco em troca, em boa medida porque o dinheiro dos bairros ricos fora da cidade não contribui em nada para o orçamento municipal. Na Bósnia, as pessoas têm que pagar tributos aos chefetes militares, em boa parte porque o dinheiro das grandes democracias industriais não chega aos cofres das Nações Unidas.
Boa parte do dinheiro que as democracias industriais gastam consigo mesmas vem da produção e comércio de bombas de fragmentação, fósforo branco, pistolas automáticas, mísseis terra-ar e outros itens que tornam a vida mais fácil para os senhores da guerra no Burundi ou na Bósnia. E para que nós, a classe média americana, continuemos a ganhar o dinheiro necessário para o nosso conforto e segurança, é necessário que haja um vasto exército industrial de reserva disposto a aceitar um salário miserável por um trabalho pouco especializado. Gastamos um bom tempo a deplorar os hábitos violentos de povos que, exatamente tal como nós, não podem se apoiar no monopólio estatal da violência. Mas não deixamos de lucrar com as condições que tornam essa violência inevitável.
E entretanto não hesitamos muito em pagar pelos serviços de uma força policial destinada a conter as gangues de um país distante. Ainda não somos tão egoístas a ponto de ficarmos indiferentes ao genocídio em Ruanda e na Bósnia. Não paramos de dizer que deveríamos fazer alguma coisa. Ficamos apavorados com a idéia de compartilhar um pouco de nossa riqueza com as pessoas que nos servem o almoço e varrem o chão de nossos escritórios, mas não nos importamos de usar um pouco do gigantesco orçamento militar americano para salvar alguns lares e vidas estrangeiros.
E, entretanto, sempre que essa possibilidade é mencionada, Washington não faz outra coisa senão enumerar em detalhes as dificuldades das propostas de ação concreta. Nenhum presidente americano está disposto a pôr em risco sua reeleição dando ordens que podem custar vidas americanas -a não ser que essas mortes se dêem no curso de uma rápida e esmagadora vitória. Justamente uma vitória assim não é possível em uma Bandenkrieg, uma guerra contra bandos armados. E são essas as guerras que aguardam muitos países pobres (incluídos aí a Rússia e a China, onde parece haver armas nucleares para quem quiser apossar-se delas).
Há 50 anos, pensávamos que o mundo aprendera algumas lições com o fracasso da Liga das Nações na Etiópia, e que, portanto, as Nações Unidas seriam bem diferentes. Talvez ainda seja tempo. Tornada irrelevante pela Guerra Fria, a ONU tem agora uma nova chance. Suponha-se que, por um instante, deixássemos a idéia (por agora risível) da "liderança mundial americana" e, de modo mais geral, a idéia de que cada democracia industrial deve tomar uma atitude própria frente às novas Bandenkriege. Suponha-se que nossos políticos se reúnam e percebam que estão complicando desnecessariamente suas próprias vidas com a necessidade de esconder suas políticas inertes por detrás de uma retórica moralista. Talvez esses políticos percebessem que valeria a pena conceder à ONU algum poder real, ao menos para evitar repetidos embaraços.
Suponha-se, mais concretamente, que as democracias industriais pusessem metade de suas unidades de combate à disposição de um comando militar nomeado pela ONU. Isso significaria que metade dos marines, dos rangers, dos seals da Marinha e de toda a turminha de Tom Clancy (mais seus equivalentes nas forças armadas do Reino Unido, da França, da Espanha, da Alemanha, da Índia, do Brasil etc) estariam à disposição do Conselho de Segurança para suprimir Bandenkriege.
Essas unidades são formadas por aquele tipo de jovem disposto e até mesmo desejoso de arriscar sua vida em combates violentos e imprevisíveis. Sempre haverá jovens assim, e seria bom usar suas energias para propósitos dessa natureza. Tais pessoas são pouco compreensíveis para nós, intelectuais -mas o inverso também vale, e eles, tal como nós, têm sua utilidade. Em sua maioria, não são sádicos -ainda que alguns o sejam (outra vez, tal como entre nós, intelectuais). Se essas pessoas pudessem ter alguma certeza de que se baterão não para preservar o conforto dos ricos ou o preço baixo do petróleo, mas para salvar pessoas inocentes, possivelmente se alistariam nas unidades de combate de seus países com a intenção explícita de servirem sob as Nações Unidas.
Se algo assim viesse a existir, talvez tivéssemos, em uma ou duas décadas, uma força policial internacional experiente de, digamos, meio milhão de homens e mulheres. Essas pessoas seriam pagas e armadas por suas nações respectivas, mas seu "esprit de corps" seria ligado à sua atuação como capacetes azuis -como homens e mulheres devotados à proteção de inúmeras viúvas, órfãos e refugiados.
Os comandantes dessa força viriam a ter sobre as decisões do Conselho de Segurança a mesma influência que um chefe de polícia honesto e experiente tem sobre as decisões de uma prefeitura. Esses oficiais seriam capazes de reunir sobre uma determinada área os aviões mais modernos, equipados com defesas contra mísseis terra-ar e sistemas de mira de última geração. Poderiam convocar as frotas de todo o mundo para transportar suas forças para qualquer lugar.
A indústria de armamentos (um setor da indústria cujo poder se deduz da raridade com que aparece nos jornais ou nas TVs) teria os maiores lucros. Ela poderia vender seus produtos para os governos que mantêm capacetes azuis, ao passo que só venderiam armas ligeiramente obsoletas ou ligeiramente defeituosas aos senhores da guerra locais. Seria uma maneira de lucrar fazendo o bem.
Seria ótimo dar um fim a esses cínicos mercadores da morte, como seria ótimo fazer algo quanto à indústria de cocaína e heroína, ou quanto àquelas pessoas que, na China e na Índia, estão desviando bens públicos para contas privadas na Suíça. Mas ninguém sabe por onde atacar esses problemas, enquanto que as Bandenkriege e seus horrores parecem ser um problema solúvel.

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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