São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A criação do mundo helênico

MARIO VITOR SANTOS; MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO; PAULA CORREIA
EDITOR DE REVISTAS

Aos 58 anos, o professor de Oxford Martin L. West é um dos mais respeitados helenistas do mundo, com mais de 20 livros e 300 artigos publicados sobre temas relacionados à literatura grega antiga. Ele fez conferências em dezembro na Universidade de São Paulo em que abordou as conexões entre a cultura grega e as do Oriente Médio e da Ásia.
West considera que a riqueza cultural do mundo helênico se deve em grande medida ao fluxo de influências que chegava à Grécia a partir do Oriente. Na entrevista a seguir, West também junta novos argumentos à tese de que "Prometeu Acorrentado" não é uma peça de autoria de Ésquilo.
*
Folha - Por que você contesta a autoria de Ésquilo para "Prometeu Acorrentado"?
West - Essa autoria tem sido colocada crescentemente sob suspeita no curso deste século. Nos últimos 20 anos, a situação mudou. Muitos estudiosos modernos concordam que a peça não foi escrita por Ésquilo. Há um estudo de M. Griffith, escrito há 15 anos, sobre a autenticidade de "Prometeu", no qual ele argumenta fortemente com base em características de métrica, estilo, linguagem, estrutura, dramaturgia. Acho que esses argumentos são convincentes.
O livro em que me dedico a discutir a questão da autenticidade de "Prometeu" usa muitos dos argumentos de Griffith, mas eu acrescentei algumas análises a respeito da construção da obra. Ela me parece inteiramente estranha a Ésquilo. A peça tem muitas características mais típicas de um período um pouco posterior, cerca de 20 anos depois da morte do dramaturgo, 440 ou 430 a.C. Eu também defendo naquele livro que o mais provável candidato para a autoria de "Prometeu" era o filho de Ésquilo, Eufórion, que também foi um tragediógrafo. Sabemos que ele produziu tragédias sob seu próprio nome. Mas se não foi escrita por Ésquilo, nós temos que explicar por que ela já na Antiguidade aparece atribuída a ele. Temos que partir do princípio de que ela foi realmente encenada sob o nome de Ésquilo, mas Eufórion produziu-a e atribuiu-a a seu pai. Acho suspeito que ele tenha encenado textos de Ésquilo que nunca ninguém tivesse visto antes. Penso que ele na verdade estivesse encenando seus próprios textos sob o nome de Ésquilo. Talvez fosse mais fácil para Eufórion conseguir um coro se ele dissesse ter peças de Ésquilo para encenar.
Folha - Seus estudos têm se concentrado na questão da riqueza que a cultura grega acumulou a partir do contato com o Oriente Médio e a Ásia. Qual foi a seu ver a intensidade dessa conexão?
West - Este é um campo que vem me interessando por um longo tempo, desde quando realizava pesquisas destinadas ao meu trabalho sobre a "Teogonia", de Hesíodo. Fui à Alemanha por um semestre para estudar com Reinhold Merkelbach, que apresentou-me à literatura do Oriente Médio. Tive a oportunidade de ter contato com alguns textos que todos aceitam ter relações muito próximas com a "Teogonia". Nos últimos quatro ou cinco anos, estou escrevendo um livro sobre as conexões entre as literaturas do Oriente Médio e grega até a época de Ésquilo e dos poetas líricos. Colecionei muito material, parte já havia sido reunida por outros antes de mim e parte é nova. Tudo vai ser juntado num livro que parece que vai ter cerca de 700 páginas. Deve vir a público em 1997 sob o título "The East Face of Helikon" ("A Face Oriental de Helikon").
Folha - Você poderia antecipar algumas das conclusões?
West - Houve uma influência muito extensa do Oriente Médio sobre a Grécia não apenas durante um período, mas por várias épocas, provavelmente no período micênico, no início do primeiro milênio a.C. até a Idade Arcaica (do século 8 a.C. até 500 a.C.). Não por um único canal, mas por muitos caminhos diferentes. Isso se mostra em muitos níveis: mitos surgem em paralelo, formas e técnicas literárias também. Em Homero podem-se achar essas características. Acho que de maneira crescente as pessoas tendem a reconhecer a importância desse tipo de estudo literário. Não se pode estudar literatura grega e ignorar todo esse contexto oriental da mesma maneira que não se pode estudar a literatura latina e desconhecer a grega.
Folha - Você diria que houve também uma influência na outra direção, ou seja, dos gregos para os povos orientais?
West - Só em tempos menos antigos. Essas civilizações orientais foram de várias maneiras muito mais avançadas e sofisticadas. Elas desenvolveram a arte da escrita muito mais cedo. E eles a usaram para desenvolver uma tradição literária erudita. Os babilônios tiveram seu período literário clássico no início do segundo milênio, o qual, depois, tornou-se ainda mais sofisticado e erudito. Tanto que no final do segundo milênio eles viviam algo equivalente ao período grego de Alexandre. Eruditos que escreviam comentários sobre poesia clássica estavam eles mesmos escrevendo poesia de uma maneira mais cultivada, com vocabulário poético mais trabalhado. Eles estavam à frente no tempo. Os gregos eram de certa maneira um povo ainda na juventude, muito ativos e intelectualmente curiosos e com muito a aprender. Eles aprenderam muito e fizeram bom uso disso.
Folha - Como toda essa abertura para influências externas pôde conviver com a atitude negativa do grego face ao bárbaro, como se nota, por exemplo, na literatura do século 5 a.C.?
West - Esta foi a época em que entre os gregos desenvolveu-se uma diferenciação entre ser grego e ser bárbaro. Antes disso, eles tinham o conceito de bárbaro, mas não no sentido de algo a ser desprezado. No período literário anterior, em Homero, temos um exército de aqueus lutando contra os troianos, mas isso não é retratado em termos de uma oposição depreciativa. Um livro muito bom de E. Hall, chamado "Inventing the Barbarians", refaz o desenvolvimento dessa atitude grega no sentido da oposição aos bárbaros, especialmente quando estas referências aparecem na tragédia. O fenômeno é particularmente expressivo nas guerras com a Pérsia (499-479 a.C.). Os gregos foram em grande parte unificados pela ameaça do império persa, quando passam a pensar de si próprios mais como gregos do que como atenienses, tebanos, coríntios ou o que fosse. É claro que o fato de que os persas foram derrotados deu um tremendo impulso para o orgulho e a autoconfiança dos gregos. Eles se deliciavam com a crença de que eram superiores a esses bárbaros, que tinham forças guerreiras muito mais numerosas. Pensavam que os gregos eram simplesmente mais fortes e bravos.
Folha - Chama a atenção em seu livro "Ancient Greek Music" o fato de que o senhor descreve em termos detalhados melodias, tonalidades, andamentos, ritmos e tempos usados na música da Grécia Antiga em oposição ao senso segundo o qual esses sons estariam perdidos para sempre.
Martin West - Temos diferentes evidências para isso: o conhecimento a respeito dos instrumentos musicais, em parte por intermédio de restos arqueológicos, parte de representações em arte antiga e referências de autores antigos, alguns dos quais escreveram textos técnicos sobre música. A literatura está cheia de referências à música e ao canto de uma maneira ou de outra, ambos obviamente jogaram papel importante na vida grega. Temos um certo número de fragmentos de partituras musicais. Se você juntar tudo pode aprender dessas fontes. É ainda muito menos do que gostaríamos de descobrir, mas parece uma quantidade substancial.
Folha - É interessante a maneira como o senhor chegou a reproduzir a melodia que acompanhava versos de textos gregos.
West - A metrificação dos vários textos dá uma pista sobre algo que deve ser muito próximo dos ritmos reais. Nas estrofes em que você tem a mesma métrica repetida, é legítimo supor que isto corresponda a algum padrão rítmico e presumivelmente também a um padrão melódico. Embora talvez possam haver algumas discrepâncias menores entre o ritmo aparente, a metrificação e o ritmo real executado, isto nos dá uma boa quantidade de informações para trabalhar.
Folha - Qual a sua impressão a respeito da repercussão que a introdução do alfabeto e de textos escritos trouxe para a maneira como se preparavam os espetáculos públicos na Grécia?
West - Deve sempre ter havido uma tradição de canção e música antes do advento da escrita. Quando um tragediógrafo ensinava canções corais ao coro ou canções solo para um ator, ele deve ter feito isso unicamente cantando o tema para eles até que eles memorizassem. Não sabemos, talvez ele fornecesse o texto da peça a eles, mas quanto à música a transmissão deve ter sido apenas oral.

Colaboraram MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO e PAULA CORREIA

Texto Anterior: A moldagem do caos por um náufrago
Próximo Texto: Cena de sangue numa rua do Bronx
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.