São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Cena de sangue numa rua do Bronx

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Na terça-feira antes do Natal, numa rua animada do Bronx (Nova York), o jovem Michael Vernon, 22, entrou numa loja de sapatos. Matou cinco pessoas. Feriu criticamente mais dois. Seu irmão declarou que Michael encomendara umas botas que não tinham chegado. Outros dizem que antes de atirar, ele gritou: "Vocês deveriam ter-me dado aquele tênis".
É fácil protestar contra a comercialização do espírito natalino. Na verdade, a paixão do consumo não é nem tanto o efeito pernicioso de ávidos especuladores: por estarmos enfim livres de castas e nobrezas hereditárias, por sermos em princípio todos iguais, acabamos sendo súditos da tirania dos objetos. Deles esperamos que nos definam, nos tornem amáveis. Portanto não é nenhuma enormidade matar por um tênis. Uma encomenda passou a valer tanto quanto podia valer no passado uma comenda.
Michael, aliás, não queria assaltar a loja e roubar um tênis. Para isso não teria precisado de uma matança. Ele parece ter reagido a uma privação em tudo comparável a uma catástrofe subjetiva. A encomenda não chega, o número certo está em falta e eis que, privados do objeto do qual precisávamos para ser alguém, arriscamos a não ser mais ninguém. Isso pode bastar para sair atirando.
Para quem gosta de fórmulas incisivas, a tirania dos objetos em nossa cultura é um corolário do império das imagens. Nossa significação, social e particular, é decidida pelos objetos que consumimos, assim como pelas imagens ideais com as quais tentamos nos parecer. As duas coisas vão juntas.
Tanto que, às vezes, nem sabemos mais direito, por exemplo, se -consumindo- esperamos satisfação dos objetos ou de nossa sonhada adequação com os estereótipos que o consumo destes objetos nos promete e que de fato organizam nossa escala social de valores.
O mundo das imagens é cruel. Pois sempre nos falta algo para ser o que demanda o figurino. Mas, pior do que esta crônica inadequação, é o que acontece quando alguém acaba forçosamente acreditando em sua perfeita coincidência com um estereótipo social.
Fora das imagens que tentamos encarnar, não somos grande coisa. Mas talvez nossa inadequação nos deixe a ilusão de sermos algo diferente das imagens: por exemplo, esta mesma consciência crítica que sabe constatar que algo nos falta para compor uma imagem perfeita. Para quem acaba acreditando em seu papel, aderindo a ele como à sua própria natureza, a queda é infinita no abismo do nada. O drama de Vera Fischer vale mais do que qualquer comentário.
Se eu fosse o pai dos meninos assassinados por Vernon, certamente estaria maldizendo a justiça e a psiquiatria, indulgentes demais. Mas, quanto mais acreditamos na liberdade do indivíduo, quanto mais nos imaginamos livres inclusive de nossa própria história, mais acreditamos na eterna possibilidade de novos começos. Progressivamente, punir se torna difícil, pois será que o criminoso -uma vez arrependido- é ainda o mesmo sujeito que cometeu o crime? Internar se torna insustentável, sobretudo para quem interna: chavear os semelhantes loucos ou culpados significa parar de acreditar em nossa própria infinita liberdade de mudar. Os partidários da pena de morte têm isso para eles: matando (mas para que funcione tem que ser logo) evitam perplexidades incômodas.
Logo antes do Natal, também, a Biblioteca do Congresso, em Washington, decidiu fechar uma exposição sobre a escravatura nos Estados Unidos, poucas horas após sua inauguração. Fechou, porque alguns funcionários da biblioteca se sentiram ofendidos pelo conteúdo.
Ainda em dezembro a mesma biblioteca renunciou a uma exposição sobre Freud, porque acadêmicos antifreudianos protestaram, alegando que as teorias de Freud foram por eles mortas e sepultadas. Ora, a exposição sobre escravatura não era certamente apologética, e aquela sobre Freud era decididamente histórica. Nem vale a pena discutir sobre os fundamentos da oposição que encontraram. Na verdade não houve discussão.
Ironia da história: a administração da maior biblioteca do mundo não se deu nem ao trabalho de acreditar na razão ou em qualquer critério que permitisse um debate e decisões argumentadas. Simplesmente obedeceu ao primeiro que gritou: "Não gosto!".
Spinoza x Kant, 1 a 0: em uma sociedade de indivíduos, o regulador social não é a razão, mas a força. Quer seja a dos alto-falantes capazes de conquistar a opinião, quer seja a das mãos e das armas. E geralmente grita primeiro e mais alto quem já se deu ao trabalho de constituir lobby. Lição paradoxal de política individualista: primeiro, na dispersão, fazer grupo. Segundo, adquirir mídia.
A crônica, em suma, nessa semana parecia um rosário de ilustrações dos impasses de nossa cultura. Mas também esteve presente -como um verdadeiro pano de fundo- o tema do ano (e, acredito, dos anos que vêm). As greves na França e o debate sobre o orçamento aqui nos EUA lembram que no mundo ocidental, ou ocidentalizado, procuram meios para diminuir o gasto público. Os governos querem voltar atrás sobre sua aparente antiga generosidade e suprimir ou encurtar assistências gratuitas, privilégios, aposentadorias.
Certo, existe um problema econômico: em uma fase de pouco crescimento produtivo, de estagnação demográfica, desemprego crescente e velhices prolongadas torna-se difícil para a população ativa arcar com gastos assistenciais. Existe também um problema político. A queda do mundo comunista autoriza um realismo econômico (necessidade de balançar o orçamento) que, em outros tempos, podia ser esquecido para evitar o sucesso ideológico de quem prometia um mundo melhor.
Má sorte do Brasil: chegar na hora de sua modernização social bem quando a conjuntura parece sugerir um retrocesso.
Atrás da conjuntura, de qualquer forma, se formula um problema que o individualismo não cansou de se colocar, mas tampouco resolveu. Qual é a justa medida entre Estado e indivíduo? O que é legítimo pedir para a coletividade, quando de fato estamos dispostos a lhe dar pouco?
A questão não é só econômica, não concerne só à famosa e aparente contradição entre a má vontade do contribuinte e seu apetite de proteção social. Trata-se de descobrir quanto de sua autonomia os indivíduos aceitariam sacrificar para que haja razões de vida social outras do que os objetos de consumo e os estereótipos que temos em comum.

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