São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Somos todos culpados

GILBERTO DIMENSTEIN

Uma empresa norte-americana gastou US$ 200 milhões para criar um óleo que não engorda nem tira o sabor dos alimentos; a batata frita fica exatamente com gosto de batata frita, mas com metade das calorias. A história dessa utopia dos gordinhos é humilhante lição aos brasileiros.
Batizada de olestra, a descoberta, patrocinada pela Procter & Gamble, está sob exame das autoridades públicas há 25 anos. Mais de uma geração.
De olho num lucro anual de US$ 1 bilhão, a empresa contratou nutricionistas para tentar provar que a invenção não provoca danos à saúde. Bombardeada de perguntas, gerou 150 mil páginas de estudos. Montanha de papel equivalente a 90 dicionários Aurélio empilhados.
O óleo chegou agora à última fase de exame, ganhou o aval do comitê do Food and Drug Administration (FDA, versão americana da vigilância sanitária), falta apenas a assinatura do chefe. Entidades de consumidores e nutricionistas continuam pressionando contra; alegam que o olestra provoca câncer.
A lição: apesar dos avanços, no Brasil não conhecemos os remédios nem os alimentos que ingerimos. A fiscalização é frágil, exibindo mais uma faceta da impunidade nacional.
Não exagero. Se uma empresa tivesse tanto dinheiro como a dona do olestra e tivesse investido tamanha fortuna num projeto, já teria aprovado há mais de 20 anos seu produto dietético -e, claro, engordaria um batalhão de burocratas.
Prova de que o consumidor brasileiro é um órfão.
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Todos os automóveis americanos são obrigados a sair de fábrica com air bag (bolsa no painel do carro que é inflada automaticamente quando há colisão), melhor proteção contra acidentes. Aí, as montadoras, que bateram recordes de vendas no ano passado, apesar da chiadeira, informam que essa proteção custaria caro.
Tão rápida em caçar favores oficiais, a indústria automobilística se mostra, nesse caso, mais devagar do que uma Romi-Isetta para proteger o cidadão.
Devem imaginar que a vida de um brasileiro vale menos que a de um americano ou a de um europeu.
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A Volks exportava para os Estados Unidos o Voyage com o nome Fox. Para se adaptar às exigências do mercado, tinha de fazer dezenas de modificações para tornar o veículo mais seguro.
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As empresas americanas preocupam-se com a qualidade de seus produtos e serviços não apenas pela concorrência. Temem processos milionários dos consumidores.
Os produtos são testados diariamente pelo poder público e entidades privadas independentes. As análises têm ampla repercussão; positiva para os sérios, péssima para quem lançou um produto de má qualidade.
Nem de longe é o ambiente brasileiro.
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Dois exemplos:
1) A Justiça considerou que a rede McDonald's vendia café quente demais e, por isso, consumidores se queimavam com facilidade. Uma mulher se queimou, foi hospitalizada, entrou com uma ação e ganhou US$ 400 mil.
2) A BMW vendeu um carro defeituoso; a Justiça entendeu que a empresa sabia do defeito, considerou fraude e obrigou-a a pagar US$ 4 milhões ao comprador lesado. Cem vezes o valor do carro.
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Judiciário e governo têm apenas parte da culpa. A sociedade brasileira tolera pacificamente uma alta taxa de impunidade -e, aqui, vamos ser honestos, a imprensa tem sua dose de responsabilidade.
Estamos acostumados a fiscalizar e esculhambar deputados, prefeitos, senadores, governadores, presidente e ministros porque enganam, mentem, são corruptos ou incompetentes.
Até certo ponto, porém, eles se prestam a bode expiatório. A degradação parece patrimônio exclusivo da esfera pública.
Um mau homem público é tão prejudicial quanto um mau empresário, que atinge a saúde ou engana o consumidor.
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Dono da livraria Cultura (uma das mais badaladas de São Paulo), Pedro Herz passou a semana em Nova York. Por obrigação profissional e prazer intelectual, fez um programa que a maioria dos turistas brasileiros na cidade não faz: visitou livrarias. E reforçou seu espanto com os preços. Os livros aqui, como quase tudo, custam um terço do preço.
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As ondas de turistas brasileiros no exterior mostram que alguém deve estar enganado. O IBGE informa que apenas 900 mil chefes de família têm renda maior de R$ 2 mil. No ano passado, segundo agências de viagem, 3,5 milhões saíram do Brasil.
Para esses dois números casarem, seria necessário que toda a elite brasileira (os que ganham acima dos R$ 2 mil) saísse do país, deixando vazios lugares como Campos de Jordão, Ubatuba, Teresópolis, Itaparica ou Búzios.
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Por essas e outras, documentos produzidos por bancos americanos informam em seus relatórios internos que, por causa dos negócios clandestinos, a economia brasileira é maior do que se imagina. Mais um atrativo aos investidores.
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Soube aqui que o presidente comemorou com redobrada alegria a passagem do ano; e não apenas pelo efeito do champanhe. Motivo: as pesquisas onde ele aparece com boa popularidade, apesar da pancadaria.
Os próximos meses, entretanto, ameaçam desfazer essa euforia:
1) Há dificílimas votações no Congresso, e a base parlamentar do governo já não tem a mesma afinação do ano passado;
2) Eleições costumam provocar tensão e ataques, com reflexos no Congresso;
3) O ritmo da economia é obviamente insuficiente para absorver a mão-de-obra, e, com o tempo, cada vez menos gente vai comemorar a inflação baixa.
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PS - Reconhecimento: Fernando Henrique começou bem 1996, anunciando-o como o "ano da educação". Já é um avanço um presidente brasileiro estipular essa meta -diga-se que ele tem a seu lado um ministro da Educação sério, prestigiado no governo e respeitado na sociedade.
Mas, a julgar pelo desempenho social do governo no ano passado, temo que o acerto na intenção não saia do papel. Se não sair não vale nada.

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