São Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 1996
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Abusados do poder

JANIO DE FREITAS

A prepotência, caracterizada pelo abuso de poder, é o pior, o mais persistente e o menos combatido dos vícios adquiridos do regime militar pelos políticos civis. É espantosa a facilidade com que governantes impingem, movidos só pela prepotência, medidas abertamente inconciliáveis com a legislação e, dos meios de comunicação até às vítimas, os aplausos e os protestos se fazem sem questionar, sequer teoricamente, quanto mais concretamente, a legalidade e a legitimidade democrática da decisão.
Os ministros José Serra e Pedro Malan; o governador de Santa Catarina, Paulo Afonso Vieira, e o prefeito Paulo Maluf estão dando três exemplos simultâneos de abuso de poder, que, de resto, só se distinguem de outros muitos abusos em curso por estarem, no momento, em maior notoriedade como medidas "normais".
A beligerância de Maluf contra os médicos da municipalidade paulistana decorre de que, com o PAS (Plano de Assistência à Saúde), o que ele pretende é nada menos do que impor a funcionários públicos um regime jurídico, o de cooperativas, que o regime do funcionalismo não comporta.
A legislação dota o administrador público dos instrumentos disciplinares e dos meios legais para exigir do funcionalismo, em qualquer nível, a prestação de serviços que dele é esperada. O PAS de Maluf, pretendendo transferir a médicos reunidos em cooperativas a responsabilidade integral pelo funcionamento hospitalar, é o reconhecimento de que a administração superior da municipalidade não tem competência para cumprir a tarefa que a legislação lhe reserva. Apela, por isso, para o abuso de poder, incapaz que é de usar o poder legal.
Sob o título já eloquente de "Arrastão salarial", a Folha argumentou, em editorial de ontem, que a recusa de correção salarial para o funcionalismo, planejada pelos ministros Serra e Malan, resultaria em dois anos sem reajustamento, enquanto o custo de vida acumularia aumento de 40%. A principal incumbência do ministro do Planejamento, na distribuição de tarefas antiinflacionárias, era eliminar o déficit financeiro. Apesar do substancial aumento da arrecadação, estimado em R$ 39 bilhões, o governo encerrou 95 com déficit. Motivo suficiente, na ótica do autoritarismo de Serra e Malan, para que eles busquem nos direitos e no bolso dos funcionários civis e militares a redução do déficit.
À prepotência dos dois junta-se ainda a que explica a passagem de todo um ano sem que tenha havido as reformas administrativa e do Estado, que deveriam encaminhar solução para os problemas ligados ao funcionalismo. A primeira ficou engasgada no Congresso, pelo autoritarismo do seu projeto inconstitucional. A segunda nem a isso chegou, submersa na doce indolência do ministro Bresser Pereira.
O governador Paulo Afonso Vieira, por sua vez, baixou um "diktat" segundo o qual, de cada vez que a folha de pagamento do funcionalismo catarinense exceder o limite constitucional de 65% da despesa governamental, os vencimentos serão cortados. O governador não aprecia o preceito legal de que salários e vencimentos são irredutíveis. E, incapaz de adequar outros custos e de aumentar a arrecadação na medida necessária, atribui a cada funcionário a responsabilidade, exclusiva do governador, pelo estouro dos 65%.
O regime militar acabou há 11 anos. Mas o abuso de poder continua sendo a regra primordial do governante brasileiro. E ainda se diz que estamos em regime constitucional democrático.

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