São Paulo, quarta-feira, 17 de janeiro de 1996
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Paulo Betti redescobre mito do início do século

DANIELA ROCHA
EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

Um gênio visionário que viveu no início do século em Sorocaba (97 km a oeste de São Paulo) e fundou uma religião que tem adeptos até hoje é o tema do novo projeto do ator Paulo Betti.
Ele pretende fazer um filme -que está com roteiro em andamento em conjunto com Clóvis Bueno- sobre a vida de João de Camargo, um homem que foi considerado em todo o Brasil o papa negro entre os anos 20 e 30.
Seu projeto inclui ainda um vídeo documental para obtenção de patrocínio e o lançamento de um livro com a iconografia histórica de Sorocaba, no período em que viveu João de Camargo, de autoria do psicanalista José Carlos de Campos Sobrinho e do historiador Adolfo Frioli (leia texto ao lado).
Paulo Betti contou em entrevista um pouco do seu projeto.
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Folha - Quem é João de Camargo?
Paulo Betti - Ele foi um negro que nasceu em 1858 em Sarapuhy, Cocais, próximo a Sorocaba, e viveu até 1942. Foi escravo quando criança e, com a abolição, fazia pequenos serviços em olaria.
Em 1906 ele teria tido uma iluminação e a partir daí criou uma espécie de culto com características sincréticas e começou a curar e fazer pregação. No local onde ele havia tido uma visão, criou uma pequena capela que tem frequentadores até hoje.
Folha - O que foi essa visão?
Betti - Quando João de Camargo tinha mais ou menos oito anos, um menino foi arrastado por um cavalo cerca de um quilômetro, até um local próximo a um ribeirão, onde morreu. Aquilo virou um caso conhecido, do menino Alfredinho. Ali onde ele morreu foi feita uma cruz de cedro e João de Camargo costumava frequentar essa cruz. Com 40 anos, ao lado dessa cruz, ele teria visto a imagem do menino. A partir daí, começou a pregar.
Folha - Como era seu culto?
Betti - Não tinha muito discurso. Era baseado na água, na pedra e na verdade. Ele criou uma igreja -a Igreja Bom Jesus do Bonfim- que tem todas as características de uma religião, segundo o sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), que realizou estudos sobre João de Camargo.
Folha - Isso criou problemas com a igreja Católica?
Betti - Apesar de ter sido batizado, ele foi preso 17 vezes. Em uma delas, foi levado a um júri popular, acusado de curandeirismo. Um advogado de São Paulo fez uma defesa brilhante e encontrou uma solução jurídica para o caso: a criação de uma associação espírita para defender João de Camargo. Ele também desenvolvia cultos africanos e utilizava algumas características espíritas. É uma igreja que tem sincretismo da igreja católica com umbanda e com o espiritismo. Temos jornais de 1942, ano em que morreu, que indicam que seu enterro reuniu 6.000 pessoas.
Folha - Povo da região?
Betti - Do Brasil todo e até do exterior. Em 1934, saiu uma reportagem no jornal italiano "Corriere della Sera" que mostrava o "Papa Negro de Sorocaba".
Folha - Como você descobriu essa história?
Betti - Sei dela desde pequeno. Meu avô era meeiro de arroz próximo à capela e eu ia muito até lá para fazer pedidos e tomar água benta. É um lugar misterioso.
Folha - Quando bolou este projeto?
Betti - Em um curso sobre documentário que fiz em Nova York, percebi como as pessoas voltavam as câmeras para suas próprias famílias. Assim o assunto veio à tona para mim. Encontrei um artigo do sociólogo Florestan Fernandes sobre João de Camargo. Peguei a câmera de vídeo e gravei o Florestan falando sobre isso seis meses antes de sua morte.
Folha - E o livro?
Betti - Encontrei muito material sobre a história de Sorocaba, que levantava para fazer o filme. Junto com José Carlos e com o Frioli, que já estudavam o assunto, resolvi editar um livro com a história da Sorocaba de João de Camargo.
Folha - O longa-metragem virá por último?
Betti - Sim. A idéia é contar a história de João de Camargo, homem que foi um escravo, um negro em uma sociedade branca que desenvolveu um culto e virou santo. O roteiro está em andamento.

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