São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 1996
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Sivam: quem avisa amigo é

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

O presidente Fernando Henrique Cardoso corre o risco de ver o seu governo desmoralizado na questão do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) caso não atente para os graves problemas na concepção do projeto e, em especial, na forma como foram escolhidas as empresas responsáveis pela sua realização.
Engana-se o presidente ao afirmar à "Veja" que "as denúncias contra o Sivam às vezes parecem demolidoras porque são tomadas fora do contexto ou têm como pressuposto a má-fé". As principais denúncias foram de boa-fé, em defesa do interesse público e comprovadas. O deputado Arlindo Chinaglia demonstrou que a Esca, empresa escolhida para ser a integradora nacional do projeto, estava inadimplente com o INSS e havia fraudado suas declarações junto à Previdência.
Compelido por requerimento de minha autoria, o Tribunal de Contas da União realizou, ainda que não de forma tão ampla quanto solicitei em abril de 1995, uma auditoria especial junto ao Ministério da Aeronáutica para atestar o cumprimento das resoluções sobre o Sivam aprovadas pelo Senado.
Descobriu, entre outras irregularidades, que a comissão responsável pelo parecer sobre a melhor empresa capaz de realizar o trabalho de integradora tinha seis de seus nove membros diretamente remunerados pela Esca. Conforme ressaltou o líder do PMDB, senador Jáder Barbalho, essa mesma comissão foi quem indicou a Raytheon.
A imprensa denunciou a existência de tráfico de influência por meio das gravações de conversas telefônicas entre o representante da Raytheon no Brasil, José Afonso Assumpção, e o embaixador Júlio Cézar Gomes dos Santos. O senador Antônio Carlos Magalhães provou a existência de um Memorando de Entendimento e de um Acordo de Informação Exclusiva, de 8/7/1992, assinados entre a Raytheon, a Esca e a Líder com o objetivo de "trabalharem em conjunto no Projeto Sivam a fim de tornar esse projeto técnica e financeiramente viável para o governo do Brasil (o cliente) e para obter contratos do cliente para o projeto".
Cientistas membros da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vêm alertando que o projeto Sivam, em vez de custar US$ 1,438 bilhão, conforme proposto pela Raytheon, poderá ser executado por US$ 927 milhões com maior utilização da indústria e da tecnologia nacionais.
Na entrevista à "Veja" FHC considerou que "a escolha da Raytheon, ocorrida no governo Itamar, foi legal", que "a Esca era o mecanismo que a Aeronáutica usava para viabilizar a formação de quadros técnicos competentes" e que "para a Aeronáutica, os seis funcionários não eram da Esca, mas pessoas de sua confiança na Esca".
Mais adequada foi a reação de Itamar Franco, que declarou à Folha considerar extremamente grave a circunstância de a Aeronáutica ter designado para a comissão julgadora seis pessoas remuneradas pela Esca, fato de que o ex-presidente só tomou conhecimento em razão da resposta do ministro Lélio Lôbo à indagação que formulei durante seu depoimento na comissão do Senado. O ministro informou não ter comunicado esse "detalhe" ao presidente.
Se concordarmos com esse procedimento na administração pública, qualquer ministro poderá designar comissões para emitir pareceres sobre projetos de interesse para a segurança nacional cuja maioria de seus membros seja remunerada pela empresa X. Nesse caso teremos de aceitar como natural que a empresa X seja a ganhadora de todos os contratos do referido ministério.
Procurei o sr. Henry Maksoud, presidente da Hydroservice, uma das empresas brasileiras que, como a Esca, apresentou-se para a condução do trabalho de gerenciadora e integradora do Projeto Sivam. Perguntei-lhe se sua empresa foi consultada pelos técnicos da comissão julgadora sobre sua capacitação para realizar o trabalho de integração do sistema. Informou-me que, embora sua empresa tenha capacidade técnica para desempenhar tal função, não foi procurado pelos membros da comissão da Aeronáutica. Isso indica que tudo já estava acertado com a Esca.
O presidente, entretanto, afirma à "Veja" que "não houve acordo" entre a Esca e a Raytheon e que "em fevereiro de 1993 a Aeronáutica mandou anular aquilo (o memorando de entendimento), antes da Esca ter participado de qualquer seleção".
É preciso observar que em 13/9/1993 a Esca foi escolhida como única empresa brasileira capaz de realizar a função de empresa integradora. Até 31/12/1994, conforme declaração do vice-presidente da Raytheon, James Carter, à "Gazeta Mercantil" em 20/12/95, o Acordo de Informação Exclusiva assinado entre a Raytheon, Esca e Líder estava em vigor. Novamente o ministro da Aeronáutica parece não ter entregue ao presidente o "Memorando de Entendimento" que as três empresas assinaram.
Fernando Henrique está cometendo um erro ao pressionar o Senado a votar açodadamente a autorização para o financiamento do projeto Sivam, o qual está exclusivamente vinculado à Raytheon, e a encerrar sumariamente os trabalhos de apuração das denúncias, sem dar tempo ao Tribunal de Contas da União de concluir sua análise sobre o processo de escolha da referida empresa e dos custos do projeto.
O governo não está sendo sincero quando diz que quer a apuração dos fatos. Lembremos que o ex-presidente do Incra Francisco Graziano deixou o governo dizendo que saía de cabeça erguida e de consciência tranquila porque havia ajudado a impedir que se realizasse um ato de corrupção revelado nas conversas telefônicas gravadas entre o chefe do cerimonial do Palácio e o representante da Raytheon no Brasil. Nesse episódio a Esca não teve participação porque já estava afastada do projeto.
O presidente alega não poder cancelar o contrato com a Raytheon por se tratar de um compromisso internacional. Creio que S. Excia. deveria seguir o exemplo de seu ministro da Saúde, que mandou cancelar a licitação internacional para aquisição de vacinas, apesar de a Fundação Nacional de Saúde ter homologado seu resultado. Tomou essa decisão diante da informação de que um laboratório coreano oferecia as mesmas vacinas por um preço que significaria uma economia de até US$ 40 milhões.
As três empresas vencedoras, entre elas o Centro de Engenharia Genética e Biotecnológica de Cuba, já foram informadas de que o Brasil realizará nova licitação para aquisição de vacinas.
O embaixador de Cuba, Ramon Sanchez Parodi, apesar do transtorno causado, disse que seu governo respeitará a decisão. Do governo americano não podemos esperar outra atitude. Tanto a empresa cubana quanto a americana têm direito de entrar com recurso caso não concordem com a suspensão de um ou de outro contrato. Mas não podemos aceitar que decisões lesivas ao interesse público sejam tomadas para evitar abalos nas relações bilaterais Brasil-EUA.

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