São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 1996
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O enterro de Mitterrand e a tradição do amor cortês

BETTY MILAN

"Tão pesadas são as correias do casamento que é necessário ser dois para suportá-las... e às vezes três."
(Alexandre Dumas Filho)

O enterro de Mitterrand foi assunto entre nós durante uma semana. Houve o jornalista comovido informando que Paris ficou entre lágrimas ou o maldoso comentando que os maiores do mundo não sabem o que dizer quando dão de cara uns com os outros.
Ficamos sabendo o que disseram os amigos e os inimigos sobre o homem que governou a França durante 14 anos, o que fizeram os grandes que compareceram à cerimônia de despedida, o rei Juan Carlos que não reconheceu o vice-presidente dos EUA, o príncipe Charles que pôs a roseta da Legião de Honra na lapela ou o russo Ieltsin, que declarou ter comparecido para mostrar a forma física e afastar assim os boatos sobre sua saúde.
Só o que houve de realmente importante no enterro foi a presença da família ilegítima de Mitterrand junto da legítima. A foto publicada por todos os jornais é impressionante. Atrás do caixão, e de frente para todas as câmeras, a esposa, Danielle Mitterrand, com uma echarpe da paz, branca, e a ex-amante, Anne Pingeot, as duas com os filhos: Jean-Christophe, Gilbert e Mazarine, nascida há 21 anos e reconhecida pelo pai em 1994.
Quem se deu ao trabalho de ler os vários artigos sobre o assunto sabe que Mitterrand desejava que Anne Pingeot e sua filha Mazarine estivessem no enterro, e que Danielle Mitterrand tomou a iniciativa de levá-las no mesmo avião em que foi para Jarnac (a cidade onde ocorreu o enterro).
O leitor tanto pode ter reprovado o gesto da viúva quanto ter considerado que ela foi particularmente simpática, mas ele de certo estranhou o fato, que os franceses pouco comentaram, os japoneses, suíços e ingleses acharam simplesmente inconcebível e alguns brasileiros, ótimo. "Classe é classe", escreveu Luís Caversan na Folha.
A ex-primeira-dama agiu acima de tudo como uma francesa, inscrevendo-se numa tradição, datada do amor cortês, o "Fin Amors" -para o qual o ciúme era considerado um sentimento deselegante a ser reprimido-, e que determinou o estilo de comportamento da aristocracia francesa.
Não é preciso conhecer profundamente a história da França para saber que, na monarquia, esposa e amante não se excluíram, precisamente porque a cada uma correspondia um lugar bem definido. Quem, aliás, se detiver na foto do jornal, verá que Anne se encontra atrás de Danielle e esta se acha no mesmo plano dos três filhos de Mitterrand.
À diferença da cultura das outras sociedades ocidentais, a francesa desautoriza o ódio do ou da amante e, com isso, de certa forma legitima a transgressão. O atual museu Picasso de Paris foi a mansão de um libertino do século 18, um conselheiro do rei, que a construiu para alojar a própria família e a do amante da sua esposa.
Verdade que a França contemporânea não é desenvolvida a ponto de vermos lado a lado o amante e o marido de uma presidente morta. Mas nós nela não vemos continuamente, como nos Estados Unidos, homens acusados de assédio sexual e atacados na justiça por mulheres cujas lágrimas não desmentem sua belicosidade.
Mitterrand não pode ser comparado, pelo que fez em vida, a um monarca. Não encarnou a França como De Gaulle, durante a Resistência, inscrevendo-se na tradição de Luis 14, que declarava: O Estado sou eu. Mas, graças aos funerais, ele está acima da oposição esquerda/direita em que sempre existiu e, daqui por diante, será lembrado como um rei.
Danielle Mitterrand, na tradição aristocrática francesa, agiu como uma rainha e, ao fazer isso diante das câmeras do mundo todo, se transformou num grande exemplo de tolerância. O que poderia ter sido mais um enterro de mais um estadista foi um ato público da maior importância, pelo ensinamento que ele silenciosamente veiculou.
Os Mitterrand serão lembrados como a família que não teria atirado a primeira pedra em Maria Madalena e mesmo quem não gostou da sua gestão não se esquecerá do enterro, daquela echarpe branca, tão comovente, da paz.

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