São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 1996
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Este é um país hostil a editores e hortênsias

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A morte, dia 11, do editor Ênio Silveira não foi inesperada. Ele foi operado há pouco tempo, com problema cardíaco grave e não era homem de sacrificar seu uísque e seus hábitos de boêmio elegante ao primeiro franzir de sobrancelhas dos competentes médicos à sua volta. Se resolvessem interná-lo, operá-lo, tudo bem. Convencê-lo a viver de uma forma austera e contrita não era conselho a ser considerado. Acrescente-se em seu louvor que também não acatava restrições aos seus duros hábitos de trabalho de editor. Era "workaholic" em tudo: na mesa do escritório e na do bar.
Estou aqui, na realidade, afugentando, diante da morte dele, uma tristeza que ele próprio não aprovaria (me imporia logo um drinque, só deixando à minha escolha presença ou não de gelo) e lembrando a mim mesmo que a idade excessiva que possamos ter não diminui a idade que outros já tenham: ainda que mais moço que eu, Ênio já chegara aos 70. Por que, então, esta impressão de ter perdido um amigo tão jovem?
Peguei, para tentar responder à pergunta, um livro comemorativo publicado pela Ática e intitulado "Momentos do Livro no Brasil". Busquei no índice onomástico o Ênio, fui às páginas que ele ocupava, folheei a esmo o livro e de certa forma entendi por que me parece tão mais moço o belo amigo setentão que perdi.
No Brasil o próprio livro, o livro em si, é moço, de história ainda curta, atribulada. Os editores que conheci de perto, como José Olympio, Alfredo Machado e Sergio Lacerda, e os que conheço agora e são amigos meus formam, aqui entre nós, um grupo entusiástico mas meio doidivanas. Que idéia é essa de viver da publicação de livros num país absolutamente determinado a manter o povo analfabeto?
Ninguém foi mais ousado e criador do que Monteiro Lobato, e, do ponto de vista exclusivamente do livro, ninguém lhe seguiu mais de perto o exemplo do que Ênio Silveira. Lobato, é claro, foi muito além do livro, na sua ambição de fazer o Brasil crescer. Ele quis reescrever e editar um país novo. Acabou, por isso, prisioneiro da ditadura de Vargas em 1941.
Lobato não se limitou a escrever sobre o petróleo. Fundou a Companhia mato-grossense de Petróleo, cujas ações eram vendidas no meio da rua, como hoje se vende chiclete. A companhia faliu. Mas me honra dizer que só comprei uma ação na minha vida inteira e a possuo ainda, da Companhia mato-grossense de Petróleo. É claro que comprei a ação porque tinha lido de Lobato, muito antes de "O Escândalo do Petróleo", "A Menina do Narizinho Arrebitado".
Ênio ficou nos livros. Mas nesse exclusivo terreno foi, como Monteiro Lobato, até o cárcere. Vejo em "Momento do Livro no Brasil" uma referência ao dia em que Ênio foi preso quando festejava seu aniversário no seu apartamento do Parque Guinle, e me salvou, na ocasião, de ser preso também. Ao lado de sua mulher Cleo, filha do editor e companheiro de Lobato, Octalles Marcondes Ferreira, e dos amigos que começavam a chegar, Ênio, quando eu entrei, colocava na sua maleta já arrumada um pacote de cigarros americanos.
O militar à paisana que subira sozinho, para prendê-lo, acabava de perguntar por mim, pois eu estava também na lista do arrastão. Antes que, ao chegar, deixasse sair algum som da boca meio aberta diante da mala meio feita, Ênio me saudou em inglês e me apresentou como jornalista visitante, depois de me dizer, calmo e composto, que estava indo em cana. "I'm being arrested."
Nessas alturas o oficial que o prendia já estava nervoso, se sentindo meio penetra entre os convidados que não paravam de chegar. Empertigou-se, meio sem jeito, e resolveu que era hora de carregar seu prisioneiro. Abriu a porta e fez sinal para que Ênio saísse, mas o anfitrião e aniversariante, maleta em punho, curvou-se do alto de seu metro e oitenta e qualquer coisa e fez questão que o visitante saísse primeiro: "Por favor".
Quando Ênio afinal partiu nos pusemos todos, entre os pacotes por abrir, que Cleo ia arrumando num canto da sala, a telefonar para uns e outros no empenho de saber para onde e para que estavam prendendo Ênio. E então, pela primeira vez, não só perguntei a mim mesmo como teria ocorrido a prisão de Lobato, que ficou três meses por trás das grades, e por que, no país em que tão poucos lêem, prendem-se tantos daqueles que imprimem palavras. Bom. A bem da verdade, acabam falindo os editores. Lobato foi preso porque dizia que não queriam que nosso petróleo fosse extraído da terra. Ênio porque pertencia ao Partido Comunista. Antes deles, na República Velha, um editor de jornal, Edmundo Bittencourt, perdeu liberdade e jornal porque falava mal do presidente Artur Bernardes.
Mas não vou, no meu adeus ao Ênio, passar do livro ao jornal. Fique a lembrança alegre dele saindo aquela noite da sua festa de aniversário, com a maleta e o milico. E me dizendo, num murmúrio, ao cruzar a soleira da porta: "Shocking".
Desbotada Petrópolis
Para não morrer de febre amarela, o Rio criou na serra uma cidade azul, Petrópolis. Ninguém sabia do Aedes aegypti quando Pedro 1º lá comprou uma certa fazenda do Córrego Seco, nome, convenhamos, pouco promissor. Mas não fazia calor, naquelas alturas de mais de 800 metros. Pedro 2º civilizou tudo com palácios e pontes, atraindo embaixadores, políticos, barões.
Não sei quem introduziu em Petrópolis as hortênsias, que lhe deram o azul, mas pergunto: Por que estão amarelecendo, ficando lívidas como damas das camélias? Conheço bem Petrópolis e noto, a cada nova visita, que tem menos hortênsias e que andam, as que sobram, pálidas de dar dó. Alguma bobagem alguém há muito tempo anda fazendo com elas e peço providências ao presidente visitante, Fernando Henrique. O assunto é leve, perfumado e civilizado, capaz de mover até o ministro Jobim. Não há índios entre as hortênsias.
Me lembro, como de um filme de terror, do milionário americano que ostentava diariamente na lapela uma fresca orquídea azulíssima e que contou à revista "Esquire": injetava tinta de caneta-tinteiro em orquídeas brancas comuns. Será que algum tintureiro petropolitano faz, na calada das frias noites, o contrário, isto é, espreme as hortênsias do Piabanha para fazer tinta azul?

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