São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Tembés, uapixanas, maxacalis e outros bichos

MARCELO LEITE

Ombudsman também existe para falar do que ninguém quer ouvir. Índios, por exemplo. O tema deixou de ser "in" há anos. A Folha insiste em negligenciá-lo, como na cobertura do polêmico decreto 1.775.
O jornal até que começou bem no assunto. No último dia 9, foi o único entre os grandes diários a destacar na capa que Fernando Henrique Cardoso tinha assinado decreto admitindo contestação de 57% do território indígena demarcado.
Para o ministro da Justiça, mentor da idéia, decreto anterior de Fernando Collor sobre a matéria seria inconstitucional, por não admitir o princípio do contraditório. Para os adversários de Nelson Jobim, não tem cabimento contraditório em matéria administrativa. A questão é técnica e não cabe aqui entrar no seu mérito.
Nas críticas internas da edição dos dias subsequentes, comecei a apontar duas deficiências no noticiário da Folha. Primeiro, o fato de o jornal não apresentar a opinião do presidente da Funai, Márcio Santilli, que tem longo histórico de defesa dos direitos indígenas. Segundo, não fazer uma enquete mais ampla entre juristas sobre a constitucionalidade.
Esta era a questão que o jornal deveria formular, se queria aprofundar o debate. No entanto, a pergunta escolhida para a seção Tendências/Debates do sábado retrasado (13/1) era velha: "A demarcação das terras indígenas foi superdimensionada?" Santilli respondeu pelo "não", mas sem uma palavra sobre o decreto.
O pior vinha adiante. Na pág. 1-7, a Folha trazia reportagem com o antropólogo Carlos Alberto Ricardo, secretário-executivo do Instituto Socioambiental (do qual participou Santilli antes de entrar para o governo). O título que li na edição São Paulo/DF era uma frase entre aspas: "Decreto não prejudica índios". No lide (primeiro parágrafo), a idéia era diferente:
"O antropólogo (...) afirma que o decreto sobre demarcações indígenas 'não gera nenhum tipo de direito' que beneficie setores contrários aos índios."
Mais grave que atribuir ao antropólogo o que não disse, o jornal omitiu o que disse -o 1.775 provocaria uma "avalanche" de recursos: "O que ele vai fazer é protelar o processo de consolidação das demarcações de terras indígenas".
Esta declaração foi publicada somente na edição Nacional, que é concluída pelo menos três horas antes da São Paulo/DF. Entre uma e outra, a reportagem perdeu 9 cm de texto, justamente abaixo do intertítulo "Críticas". O corte -"preguiçoso", nas palavras da editora de Política, Paula Cesarino Costa, 31- foi feito para abrir espaço a uma pequena reportagem.
Os erros de edição foram admitidos pelo jornal em um honesto erramos publicado terça-feira. Para Ricardo, isso não é suficiente:
"Não repõe o dano para uma pessoa dedicada há tanto tempo ao setor. Houve um certo impulso da Folha em tentar esclarecer uma suposta divergência de opiniões entre o instituto e o Márcio Santilli. Uma certa forçada de barra, que acaba induzindo ao erro editorial. É como a gente percebe o estilo editorial da Folha -quando ela entra numa polêmica, nem sempre está atenta para as sutilezas do argumento".
É uma maneira até polida de afirmar que o jornal aborda com forte viés a questão indígena. Gostaria de poder convencê-lo do contrário.

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