São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
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A perspectiva militar

JOÃO SAYAD

O mundo aparece de forma diferente para sargentos, tenentes e generais. Sargentos têm missões, ordens claras e nítidas que se tornam verdades, valores e são executadas sem pestanejar. Se a ordem é avançar, não podem recuar, ainda que avançando percam a guerra. Imitam os gestos, os pensamentos e as decisões de seus superiores sem entender a essência do problema. Tenentes conhecem muito bem a teoria: recém-formados em escolas preparatórias de oficiais, aprendem e acreditam numa teoria completa, clara, lógica e coerente que explica todo o mundo. Abraçados às teorias, têm um discurso convincente, são ótimos chefes de sargentos, incutem entusiasmo autêntico nos corações dos subordinados, como aprenderam na escola. Os generais, coitados, sofrem. Conhecem a teoria e o mundo, mas a experiência e a visão do conjunto lhes ensinou todas as contradições. Têm que dar ordens cruéis, cheias de falso entusiasmo que esconde suas dúvidas e incertezas, são obrigados a tornar aparentemente insensíveis aos sacrifícios de vidas humanas que suas decisões acarretam.
Talvez o debate dos problemas brasileiros possa ser melhor entendido se for classificado por patentes militares. O acordo entre sindicatos e governo sobre a reforma da Previdência é coisa de general. A contradição da solução que tem sido aplicada no mundo inteiro -aposentar-se mais tarde, trabalhar mais quando faltam empregos- só pode ser compreendida por general. O acordo reduz alguns problemas financeiros da atual Previdência e posterga a batalha, para quando o quadro for mais claro, a solução menos contraditória, menos vítimas e a certeza de vitória, maior.
A privatização tem sido debatida entre sargentos e tenentes. Os sargentos querem privatização selvagem -sem entender direito por que e para que. Ordem é ordem. Os tenentes estão tentando privatizar a Vale do Rio Doce. Mas por que privatizar uma empresa submetida à concorrência internacional, atualizada tecnologicamente e que se cair na mão dos concorrentes (outras grandes mineradoras) ou dos seus clientes (grandes usinas siderúrgicas internacionais) apresentará lucros menores para os seus acionistas? Um general veria claramente que apesar de a Vale ser mais fácil de privatizar, a privatização urgente está na área da Telebrás. Essas empresas correm o risco de se tornar obsoletas, pois a tecnologia de telecomunicações cresce de forma que não podemos acompanhar. São relativamente eficientes, hoje, mas com o tempo, estão ameaçadas por novos meios de comunicação, pelo telefone celular e pelos controles que os sargentos encarregados do déficit público impõem a essas empresas há pelo menos 20 anos.
O déficit público, há muito tempo, é assunto de sargento. Os generais sofrem ao ver o desmazelo e a falta de recursos para estradas, saúde, justiça e segurança, ao lado de uma despesa de US$ 22 bilhões com juros. Os generais, entretanto, são incapazes de controlar a tropa de sargentos que obtém imensas vitórias em termos de caixa a custa de serviços públicos cada vez piores, acidentes nas estradas, mortes em salas de espera dos hospitais, crimes e violência crescentes em todas as cidades brasileiras.
O emprego é problema gravíssimo. Nem os generais sabem o que fazer. Os sargentos cantam em prosa e verso a terceirização, a reengenharia e outras formas de aumento de produção. Os tenentes atribuem as dificuldades ao custo Brasil. Mas o problema carece de general.
A inflação, graças a Deus, tornou-se problema de tenentes e sargentos. Os generais podem delegar o assunto. Falta general para pensar sobre crescimento. Para a questão do desemprego, da exclusão social, da miséria e da tristeza, falta um marechal.

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