São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
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O tamanho do Estado

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

A crise orçamentária que o governo americano está enfrentando em função do conflito entre o Partido Republicano e os progressistas liderados pelo presidente Bill Clinton revela com clareza a perplexidade do mundo contemporâneo em relação ao tamanho do Estado.
A vitória republicana nas eleições parlamentares de 1994 levou os analistas da sociedade americana à conclusão de que o projeto do povo americano era diminuir ainda mais o Estado.
Entretanto, no momento em que os republicanos fizeram suas propostas de redução do déficit público por meio da diminuição dos gastos sociais, o presidente Clinton reagiu com firmeza e estabeleceu-se um impasse. O mais interessante, entretanto, foi que os republicanos não contaram com o apoio da opinião pública. Ao contrário, até agora as pesquisas de opinião indicam uma clara perda de popularidade dos conservadores e especialmente de seu líder no Congresso, Newt Gingrich, enquanto Clinton recupera sua popularidade.
Por que está ocorrendo esse fenômeno nos EUA? Depois do colapso dos regimes comunistas não existiria hoje um consenso no capitalismo contemporâneo quanto à necessidade de reformar e reduzir o Estado? Ou esse consenso necessita de qualificações para fazer algum sentido? De fato, diante da crise do Estado e do consequente predomínio ideológico do neoliberalismo, reformar o Estado tornou-se nos anos 90 sinônimo de reduzir seu tamanho.
Redução que para os conservadores se tornou um artigo de fé, e para os progressistas, uma eventual solução pragmática para a crise do Estado.
Dado que o Estado cresceu excessivamente neste século, assumiu a produção direta de uma quantidade enorme de bens e serviços, foi vítima de crescente assalto por grupos de interesse e afinal caiu em grave crise fiscal, na maioria dos países há necessidade de reduzi-lo. Mas reduzir o Estado para que tamanho? Não há resposta clara.
Existe apenas um quase consenso: o Estado deve sair da área empresarial, ou seja, da produção de bens e serviços para o mercado. E um segundo consenso vai aos poucos sendo construído: cabe ao Estado regular e transferir, não executar. A função reguladora é a função clássica do Estado. Por meio dela mantém-se a ordem, a propriedade e os contratos são garantidos. Mas é também por meio dela que o Estado interfere no mercado e tenta corrigir suas falhas.
A função transferidora é a função econômica por excelência do Estado. Enquanto o mercado coordena a economia por meio de trocas de equivalentes, o Estado faz o mesmo por meio de transferências, tributando uns e transferindo os recursos para outros. Assim o Estado complementa o mercado.
As funções clássicas do Estado, de segurança e justiça, e suas funções sociais são assim financiadas. Finalmente temos a função executora do Estado, quando ele produz diretamente bens e serviços. É essa função executora que está ou deveria estar em discussão.
O Estado pode retirar-se apenas da execução de um serviço ou do financiamento (função transferência) e da execução. No caso das empresas estatais o que se propõe é a retirada total, por meio da privatização. Não faz sentido o Estado subsidiar empresas estatais.
Já no caso dos serviços de educação e saúde é preciso fazer clara a distinção entre transferências e execução. Poderá ser conveniente que o Estado não se responsabilize diretamente pelos serviços, deixando-os para organizações públicas não-estatais. Mas deverá continuar a transferir recursos para esses serviços se quiser reduzir as disparidades de renda provocadas pelo mercado.
Tais transferências poderão ser feitas por meio de subsídios orçamentários diretos para entidades públicas não-estatais que assumam a forma de organizações sociais. Alternativamente poderão ser feitas por meio da montagem de um sistema em que cidadãos recebem pessoalmente as transferências (bolsas de estudo, "vauchers" de saúde, tickets-refeição) e as usam pagando as instituições supridoras dos respectivos serviços.
Nos EUA, o que está hoje em discussão, entretanto, não é a quem cabe a execução dos recursos, mas se é papel do Estado realizar no volume atual as transferências para a área social.
Estranho é que esse debate esteja no centro das atenções de um país em que o Estado não é grande, já que a carga tributária representa apenas 30% do PIB contra um número próximo a 50% nos países europeus. E mais estranho ainda que isso ocorra quando a repartição de renda no capitalismo contemporâneo é tão mais concentrada quanto menor é a carga tributária. Enquanto nos países europeus social-democráticos a porcentagem da população abaixo da linha da pobreza é frequentemente inferior a 5%, nos EUA chega a cerca de 20%.
Mas esses fatos estranhos tornam compreensível porque os republicanos estão encontrando tanta resistência em sua tentativa de reduzir o Estado americano. Eles não estão sendo realistas, mas dogmáticos. Em termos pragmáticos, para se equilibrar o orçamento público nos EUA o problema não é diminuir a despesa, mas aumentar a receita.
Enquanto o inverso é verdade para a Europa. Os grandes problemas que a Europa vem enfrentando nos últimos anos -especialmente o alto nível de desemprego- derivam principalmente de um Estado grande demais, que onera excessivamente a folha de pagamento das empresas. O grande problema atual dos EUA -a crescente concentração de renda- só poderá ser resolvido com o aumento dos serviços sociais do Estado.
No Brasil, com uma carga tributária de 30% do PIB, o tamanho do Estado está provavelmente adequado, dado o nível de desenvolvimento do país. Não podemos ter uma carga tributária européia com uma renda por habitante cinco vezes menor. A não ser no caso da privatização das empresas estatais, nosso problema não é reduzir nem ampliar o Estado, mas torná-lo eficaz e eficiente.
Eficaz no sentido de que preste os serviços de que a sociedade realmente necessita. Eficiente no sentido de que realize esses serviços com maior qualidade e menor preço. Por isso a reforma da administração pública tornou-se tão importante aqui. Por isso ela vem recebendo tanto apoio da sociedade. É uma reforma que vem atender a uma real necessidade da sociedade brasileira, em vez de repetir slogans dogmáticos.

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