São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
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Deu cupim no Brasil

DARCY RIBEIRO

A praga é tamanha que em certos lugares as casas viram papel e esboroam. Matam aquele horror de cupins, uma pena.
Em outros, o prejuízo é ainda maior. Comeram a usina de Volta Redonda, útero da industrialização brasileira, entregue por dois dinheiro a três banqueiros que estão lucrando tremendamente. Insaciáveis, comeram depois a Usiminas, ali, bem na cara dos mineiros, onde a lucratividade é também extraordinária.
Agora, estão preparando as queixadas para roer coisas maiores. A Petrobrás teve de aceitar peias nas pernas para as bichas montarem. A Vale, já transferida quase inteira de papéis passados para os cupins, é agora oferecida em leilão nas miudezas, porque é grande demais para uma bocada só.
Tudo bem, é nossa tradição. Em nome do progresso futuro, vendemos o passado, ou o que nos restou dele, feito, imperfeito, mas melhorável. Isso não é tudo, foi necessário também providenciar para que não haja recursos futuros para fazer novas Lights. Para isso apararam as asas da lucratividade nativa pública e privada a fim de que só os cupins lucrem, fermentem seus ganhos e os remetam para fora.
Chocam-se nessa guerra brasileiros versus cupins -duas concepções do poder público e duas economias políticas. Uma delas concebe o Estado como edificador da nação e servidor da sociedade, cuja população deve cuidar, sobretudo, dos carentes.
É a ideologia da responsabilidade social da ação governamental. A outra é a idolatria do mercado, da livre lucratividade. Traz embutida a promessa do céu, dizendo que quando os ricos ficarem muito ricos dividirão sua riqueza.
É a ideologia da usura liberal, o reinado do lucro. Tem como principal solução para tornar uma empresa imediatamente lucrativa dispensar metade de seus trabalhadores e dobrar as exigências de trabalho dos que restam. Só nisso lucram horrores.
Outra forma é hostilizar qualquer programa de caráter social ou de interesse nacional, o que a desonera de obrigações nessa área, libertando-a para o puro jogo da lucratividade.
Fazendo a cabeça dos tecnocratas do governo, apropriando-se de quase toda a mídia, a ideologia do lucro alcançou a unanimidade dos tolos, os convenceu de que nada há mais novidadoso em economia do que trotar na velha rota liberal privatista.
A perspectiva reaberta é perfeita, uma rota só de 500 anos, em reta. Vai do primeiro engenho de gastar negros, produzindo açúcar de lucrar e adoçar bocas alheias, até os ouros de Minas, que financiaram a caça de mais milhões de africanos.
Chega, agora, em esplendor, com a cupinzagem. Nas primeiras eras da rota, criamos cidades, plantamos civilização, que floresceram sobre a purulência, como é natural das flores. Fazíamos pátria.
De agora por diante, o processo será asséptico, não haverá pustemas, porque a morte será melhor e mais barata que a vida. E esse paisão nosso, descomunal, bocejará feito besta, coçando as partes e rindo pro Fernando.

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