São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Réquiem para um escoteiro

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Era alto, emplumado, dava sempre a impressão de ter saído de um banho frio e revigorante. Não usava apito na boca, mas estava sempre alerta, como um escoteiro (não sei se ainda existem escoteiros, no mundo em que ele nasceu e viveu havia). Sua característica principal era essa: embora conversando sobre política, arte, literatura ou negócios tinha o olho vigilante para a velhinha que ia atravessar a rua, o cego perdido na calçada.
Chamava-se Ênio Silveira, era paulista e editor, foi o único sujeito da história que comprou uma briga absurda com o Partido Comunista para ser comunista e entrar no partido -que, diga-se de passagem, não o merecia. Pensando bem, o mundo também não o merecia, pois ele pairava numa região ideal onde valia a briga, mas nunca o ódio, onde reinava a justiça, mas sem a polícia. Agora que morreu, eu me pergunto se ele realmente existiu.
Passei dez anos querendo dizer isso de público, mas como era meu editor, achava que não valia a pena. Ele ameaçava escrever suas memórias, contando inclusive meus podres. O carro-chefe dessas recordações foi a noite em que, tentando minha reconciliação com um casamento já desfeito, ia levando um balde de água em cima, banho merecido por sinal, eu não dava as caras em casa havia dois meses.
Além disso, foi o editor mais dinâmico que o Brasil conheceu. Dominou a área editorial nos anos 50 e 60, houve mês em que publicava 26, 28 livros, mais de um por dia útil. Lançou uma geração de autores e fez de sua editora e livraria a mais sólida e consistente trincheira contra o Movimento Militar de 64.
Pagou o preço pela resistência, foi preso diversas vezes, derrubaram sua livraria, mas ele nunca deixou de ser o escoteiro que examinava as ruas procurando a velhinha que precisava de ajuda, o cego perdido no caos.
Sua morte, semana retrasada, mereceu bom destaque na mídia nacional. Sentimos a perda de um homem que acreditava no bem. Com um apito invisível, ele sinalizava para seus amigos um caminho de alegre e assombrosa dignidade.

Texto Anterior: Incoerência
Próximo Texto: Deu cupim no Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.