São Paulo, sexta-feira, 26 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Dias Felizes' ainda está na Guerra Fria

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

A falta ou a impossibilidade da comunicação é um tema obsessivo -dos anos 50.
Está presente, obsessivamente, nas peças do chamado teatro do absurdo, de que o franco-irlandês Samuel Beckett é parte -na listagem algo artificial do acadêmico Martin Esslin, no livro que deu apelido ao "movimento", em 1961.
Beckett, a partir de "Esperando Godot" (1953), a primeira peça, iniciou uma longa caminhada até o silêncio. Não faltou sequer uma peça chamada, precisamente, "Silêncio", de 1970, um ano depois de receber o Nobel.
(Não deixa de ser irônico que, depois do "silêncio", ele ainda tenha tido duas décadas para escrever umas poucas peças curtas, como se o fim esperado não chegasse na hora e deixasse o autor sem o que fazer.)
"Dias Felizes" (61) está na metade do caminho. Ainda guarda algo da forma idealizada pelo dramaturgo em "Godot", com os dois "clowns" da tradição do teatro ocidental -por exemplo, os coveiros, em "Hamlet".
Mas os dois, um casal, ela com cerca de 50, ele com cerca de 60, também já enfrentam a falta de comunicação entre eles mesmos, com algumas poucas tentativas de diálogo.
O que havia começado como a impossibilidade da comunicação com Deus (Godot, God) ganhou a forma mais mundana da impossibilidade da comunicação entre marido e mulher, durante a terceira idade.
Muito tempo passou e a vida é outra.
Não à toa, a peça paradigmática da nova dramaturgia nesta última década de milênio tem como protagonista um anjo, que desce para trazer, precisamente, a comunicação de Deus.
O que significaria, talvez, que Samuel Beckett não fala mais ao tempo presente, não é o espelho do presente.
Quem assistir a "Dias Felizes", com Fernanda Montenegro, vai entender de que se trata.
A grande estrela, a grande dama do teatro faz o que pode, com inteiro domínio da cena e do público, com "timing" adequado para a pouca -e algo desperdiçada na tradução- comicidade da peça, tendo em Fernando Torres o "escada" mais perfeito, capaz de responder, reagir com um rápido olhar, saltando da atriz para a platéia e de volta.
Mas o espetáculo se arrasta, preso às marcações implacáveis do autor, que impede Winnie, a mulher, de se movimentar, preferindo a alegoria formal do seu sufocamento, dela, Winnie, soterrada mais e mais, com a idade, a dar ação, conflito, prazer ao público; preferindo, em última análise, o sufocamento do próprio público.
As mais recentes -e bem poucas- montagens de Beckett têm buscado contornar a aridez temática do dramaturgo, bem própria do auge da Guerra Fria, é bom lembrar, com o humor.
Que o diga Denise Fraga, cujo Wladimir, quatro anos atrás, em horário alternativo, em São Paulo, foi histórico. Que o diga Steve Martin, idem, três anos atrás, em Nova York.
Fernanda Montenegro bem que busca o mesmo, em "Dias Felizes". Mas não apenas a peça é uma comédia inferior a "Esperando Godot", como a diretora Jacqueline Laurence, ao que parece, aproximou-se dela com excessiva reverência.
Um clássico tem como qualidade -e como exigência, na verdade- permitir uma nova visão, uma revisão em outro tempo.
É o que faz dele um clássico, não a sua montagem museológica, distante, reverente -no caso, não apenas quanto ao texto, mas também quanto à mise-en-scène e quanto ao próprio desenho do espetáculo.
O cenógrafo J.C. Serroni, por belos, até belíssimos que sejam o cenário e os figurinos de "Dias Felizes", não escapou do que se conhece quanto ao cenário da montagem original e ainda menos quanto à tradição "clownesca" em Samuel Beckett, para os figurinos.

Peça: Dias Felizes
Autor: Samuel Beckett
Direção: Jacqueline Laurence
Elenco: Fernanda Montenegro e Fernando Torres
Onde: Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, região central, tel. 256-2281)
Quando: quinta a sábado, às 21h, e domingos, às 17h; até dia 11 de fevereiro
Quanto: R$ 20 (qui, sex e dom) e R$ 25 (sáb)

Texto Anterior: Mostra reúne 1.100 obras de particulares
Próximo Texto: Travolta e Belafonte travam duelo de atores em "A Cor da Fúria"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.