São Paulo, sábado, 27 de janeiro de 1996
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Matemos touro como índio e outros bichos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

"Eu fui às touradas em Madri/ e quase não volto mais aqui/ p'ra ver Peri/ beijar Ceci" é marchinha carnavalesca (Alberto Ribeiro e João de Barro) que em 1950 o Maracanã inteiro cantou ao vencer com um olé o time da Espanha, que já se imaginava campeão e se intitulava "La Fúria". O Maraca, no dia que foi talvez o da maior alegria na inauguração do estádio, saiu de lá entoando a marchinha inteira: "Eu conheci uma espanhola/ natural da Catalunha/ queria que eu tocasse castanhola/ que eu pegasse touro à unha/ caramba, caracoles, sou do samba, não me amoles/ p'ro Brasil, eu vou fugir/ isto é conversa mole para boi dormir".
Ai de mim, como todos sabemos, a fúria que a Espanha nos prometia se concentrava num vizinho minúsculo mas furioso deveras, em termos futebolísticos, e o Rio, no dia da partida final contra o Uruguai, saiu do Maraca soluçando "La Cumparsita".
Pelo que li na "Agrofolha" outro dia, volta ao Brasil a idéia das touradas. O fazendeiro Fernando Marsella pretende financiar, ele próprio, não sem pompa e olé, o Primeiro Encontro Brasileiro de Tauromaquia. Como que a dar à idéia uma prévia garantia de público, o Consulado da Espanha em São Paulo lembra que a colônia espanhola local conta um milhão de pessoas. Bisneto de espanhóis, Marsella fala como quem tem fé: em pouco tempo o Brasil poderá até criar e exportar miúras.
Pode ser que sim, mas acho, como Fábio Feldman, o secretário paulista do Meio Ambiente, que jamais vingaria no Brasil a idéia de touradas, que são o único esporte místico que se conhece e que só de fato floresceu na terra de San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Ávila. Nunca sequer se implantou em Portugal. Antigamente, quando o Brasil tinha antologias, a gente lia no curso ginasial um certo escritor português Rebelo da Silva, que escreveu mil páginas, imitando Alexandre Herculano, só conseguindo algum renome com o relato que intitulou "A Última Corrida de Touros em Salvaterra".
Não encontrei, agora, quem tivesse o texto, para que eu o relesse, mas, se bem me lembro, Rebelo contava como, no século 18, o marquês de Marialva morrera numa tourada em Salvaterra, e sua morte foi, para Portugal, a última chifrada. Os touros passaram a lutar com os chifres "embulados", isto é, com as pontas envoltas em couro, e em compensação não eram mortos no fim do embate. Um acordo entre cavalheiros. Assisti em Lisboa, em 1947, a uma tourada que, além dos belos cavalos, tinha como verdadeiros heróis os chamados "forcados", campônios hercúleos que atacavam de peito aberto os touros embolados para, imobilizando cada um dos chifres do animal em cada sovaco, torcer-lhe o pescoço até que o touro se ajoelhasse na arena, debaixo de aplausos do povo. Davam, em suma, uma gravata no miúra e não corria sangue de ninguém. Uma atlética façanha, a dos forcados, mas, aqui entre nós, a tourada de Madri virava chalaça em Lisboa.
No Brasil, ela virou a sinistra piada que é a farra do boi, inventada por descendentes de açorianos, em Santa Catarina, onde o pobre boi brabo, atormentado por perseguidores, ferido e apedrejado, chifrando alguém quando pode, acaba esquartejado para ser comido como churrasco. A farra do boi é a tourada transformada em caso de polícia.
Eu nunca assisti a uma verdadeira tourada, isto é, a uma tourada na Espanha, mas, apesar de ter assinado tanta lista contra tanta coisa em minha vida, jamais assinaria uma contra esse "esporte" em que o homem deveras arrisca a vida apenas para tratar a morte com uma espécie de arrogância.
Fazendo jornalismo depois da Primeira Guerra Mundial, Ernest Hemingway, buscando a morte onde pudesse encontrá-la para ter assunto, foi às touradas em Madri. O pior horror que tinha visto até então, em Smirna, era a frieza com que gregos, antes de abandonarem a cidade ao inimigo, quebravam as pernas de seus burros e cavalos e os abandonavam à morte em água rasa. Hemingway ouviu então de Gertrude Stein e Alice Toklas que a única crueldade limpa que havia no mundo era a das touradas espanholas, e para Madri embarcou, sem imaginar que a Espanha ia não só lhe dar o tema de romances como o de um grosso e fascinante livro exclusivamente dedicado às touradas, intitulado "Death in the Afternoon". É uma espécie de obra clássica das touradas, com esplêndidas fotos de touros e matadores e um impecável glossário. Hemingway cita, no fim da obra, os 2.077 livros e panfletos em espanhol que compulsou. Como não me incluo entre os maiores admiradores da literatura de Hemingway, não saberia dizer se algum dos seus romances vai fazer parte de algum dos cânones da literatura ocidental, que andam tão em moda agora. Mas "Death in the Afternoon" há de ficar entre as mais completas e perfeitas reportagens jamais escritas.
As touradas renderam lancinantes poemas a Federico Garcia Lorca. Mas devo dizer que o poema mais belo que inspiraram foi escrito em português por João Cabral de Melo Neto e se intitula, com cabralina simplicidade, "Alguns Toureiros". Com a mesma e aterradora calma dos toureiros quando se vêem diante da morte na arena, Cabral compara a arte das "corridas" à da poesia e acaba, na comparação com o estilo do grande Manolete, por ensinar tudo que se pode ensinar ao poeta no momento da criação: "...sim, eu vi Manuel Rodriguez,/ Manolete, o mais asceta, não só cultivar sua flor/ mas demonstrar aos poetas:/ como domar a explosão/ com mão serena e contida,/ sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida,/ e como então trabalhá-la/ com mão certa, pouca e extrema:/ sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema".
É impossível dar uma aula mais profunda de poesia, com menos palavras.
Outros bichos
Sob o título pitoresco de "Tembés, Uapixanas, Maxacalis e Outros Bichos", o ombudsman da Folha, Marcelo Leite, começa seu artigo do dia 21 dizendo: "Ombudsman também existe para falar do que ninguém quer ouvir. Índios, por exemplo". Ele talvez tenha alguma razão em relação ao noticiário da Folha. Em termos de colaboradores não há queixa possível. Na página 3 até um índio, Marcos Terena, escreve. Quando um velho amigo meu, companheiro do "Correio da Manhã", Hélio Jaguaribe, escreveu na dita página um sombrio artigo sobre a inutilidade de cuidar dos índios, Darcy Ribeiro lhe deu resposta num indignado artigo, também na Folha. Escreveu também neste jornal sobre os índios Rubens Ricupero, quando ministro da Amazônia e do Meio Ambiente. No "Ponto Crítico" da Folha travou-se verdadeiro combate sobre o massacre dos ianomâmis. Para muitos colaboradores da Folha os índios não são outros bichos. Aliás, acho que só mesmo "Porantim", o jornal do Conselho Missionário Indígena escreve mais sobre índios do que a Folha.

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