São Paulo, sábado, 27 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Artigo revela estupor ante o prazer da cozinha

JOSIMAR MELO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em princípio tive preguiça em comentar o artigo de Marcelo Coelho, "Cozinha sofisticada alimenta o esnobismo" (Ilustrada, 19/1). É que sua "antipatia" por "livros de receita, críticas de restaurante, conversas sobre comida" é tão contraditória, frágil, cheia de mea-culpa...
Mas vá lá: Marcelo ao menos levantou a bola para o assunto, ainda que para desancar-nos, pobres glutões... Não vou perder esta chance de discutir um tema que (para desespero dele) fascina cada vez mais gente. Mesmo a quem, como ele se descreve, basta uma pizza e um bombom.
Já que usurpo sua deixa para fazer meu proselitismo, devo começar me referindo ao artigo e suas contradições.
Marcelo acha "esnobismo" falar de tal ou qual bistrozinho; mas confessa que é ele o esnobe, "em não ligar para esta frescura toda". Torce o nariz para quem aprecia blanquette de vitela; mas se vê no direito de ter suas idiossincrasias (odeia maionese no cheeseburguer). Diz que falar de comida não ajuda a entender o mundo; mas confessa ser ele o ignorante no assunto, que foi guia para muitos historiadores.
Simples como ele só, despreza livros de receitas e conversas "preciosísticas e detalhistas"; depois reconhece candidamente que "receitas são cultura", principalmente se têm história, erudição, sociologia... ou seja, nada da simplicidade de quem apenas transmite um saber-fazer. Marcelo combate o "esnobismo" de sobre uma torre de marfim.
Uma bobagem. Mas útil para mostrar o estupor generalizado dos que ainda não engoliram esta história de homens picando salsinha, da comida sendo elevada de simples combustível à condição de arte. Claro, em Paris é normal, é tradição cultural. Ninguém acha Proust, Jean-François Revel ou Gérard Depardieu malucos por prezarem a arte culinária.
Ah, mas aqui no Brasil... Que história é esta de homens invadirem seara feminina com tão suspeita desenvoltura, hein? Ou mulheres largarem o feijãozinho a que Deus as condenou para desejar comidas sofisticadas? Enfim, gente se entregando a área tão pecaminosa que, ricocheteando pelos puros dons do intelecto, remete às perigosas regiões da sensualidade, do prazer corporal?
Desvios tão vulgares teriam explicações simples, segundo o preconceituoso Marcelo: a classe média ficou pobre, não pode "educar" uma empregada, então tem que cozinhar; e compra livro de receita para poder fugir dos padrões da comida classe média tipo "gerente de banco".
Poderia lembrar que, de várias formas, o interesse pela comida aparece no Brasil na obra e vida de gente tão distante desta rasa caricatura quanto Machado de Assis ou Câmara Cascudo. Mas deixa pra lá. Mesmo que fosse como ele diz, qual o problema em quem tenta elevar seu padrão cultural-alimentar? (Será que Marcelo restringe suas leituras aos "saudáveis padrões de classe média"?) Mais: não são apenas "publicitários, modettes" que procuram refinar seu paladar. Gerentes de banco também. Tentam prover, usando suas mãos (e inteligências, livros e críticas) o seu próprio prazer.
O entendimento do lugar da comida (não como dado econômico, mas epicurista) é ainda frágil, como mostram os ziguezagues do artigo. Mesmo aqui na Folha. Exemplo: as críticas de restaurante que eu assino são confinadas a cadernos locais de roteiros, como se fossem apenas de uso práticos de quem vai comer fora. Se o leitor de uma cidade vizinha a São Paulo comprar o "New York Times" ou o "Monde" acompanhará as críticas de restaurante e, com elas, as tendências gastronômicas de Nova York e Paris; mas na Folha nada lerá sobre os restaurantes da vizinha São Paulo. Um leitor do Pará lerá na Folha críticas das peças paulistanas e até quem foi dançar num clube dos Jardins. Mas nada sobre comida.
Marcelo teve a sensibilidade de levantar o tema. Mas é intolerante. Por que incomodar-se com quem quiser discutir "intérpretes de música clássica, cantores de ópera" ou "vinhos" (ou quadrinhos, ou orquídeas)? Deixe-os, mesmo que de seus prazeres estéticos fermente algum esnobismo (acontece até nas melhores colunas). É uma forma de engrandecer, culturalmente, toda forma de "preciosistas". Dos que exigem whisky canadense no seu manhattan (como eu), escolhem a dedo a picanha do domingo (como o "gerente"), até o Marcelo -que, mesmo não tendo a sorte de sentir o gosto da trufa (como disse ele), sempre poderá aprender, e ter prazer, ao morder com mais atenção seu singelo bombom Garoto.

Texto Anterior: Matemos touro como índio e outros bichos
Próximo Texto: 'Maracutaia' opta por humor padronizado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.