São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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A CENA DILACERADA

DO "LE MONDE"; DA REDAÇÃO

Heiner Müller, enterrado no último dia 16, ocupa centro da dramaturgia atual
No último dia 16, foi enterrado em Berlim o dramaturgo Heiner Müller, que morreu em 30 de dezembro, aos 66 anos, de um câncer do esôfago. Autor de mais de 30 peças, Müller é o maior nome do teatro alemão desde Bertolt Brecht, ao lado de quem está enterrado. Marcado pela Segunda Guerra e suas sequelas, transformou profundamente a dramaturgia contemporânea, com sua visão provocadora e sem ilusões, uma das mais vigorosas expressões dos dilaceramentos do século.
Ele nasceu em Eppendorf (Saxônia) em 1929, período negro do desemprego e da desordem que fez a cama do nazismo. Sua mãe era operária em uma indústria têxtil e o pai, colarinho-branco, membro do Partido Social-Democrata. Sua prisão em 1933, após a tomada do poder por Hitler, tornou-se a cena fundamental na vida de Heiner Müller. Ele não cansou de contá-la, com variantes, mas conservaram-se o ruído dos homens na noite, a voz de seu pai chamando-o pelo nome -ele não responde; finge que está dormindo. Recordações de um medo, sentimento de uma traição.
Alguns meses mais tarde, seu pai foi libertado e levou sua família para Waren, em Mecklemburg (norte da Alemanha). Desempregado, o pai estudou direito em cursos noturnos e ofereceu a seu filho -recrutado por obrigação pela Juventude Hitlerista- "uma outra experiência da traição": ajudou-o a escrever uma redação sobre as rodovias, orgulho dos nazistas. O menino escreveu que as estradas eram boas por que permitiam a seu pai encontrar trabalho.
Nem por isso o pai abandonou suas convicções. Em 1941, ele foi novamente preso e enviado à França num batalhão disciplinar. Sem dúvida, ele transmitiu a seu filho este traço de caráter que Wolfgang Engel, diretor de teatro na ex-Alemanha Oriental, resumiu assim: "Dizer não, fazer o contrário".
Em 1944, Heiner Müller foi mobilizado, passou os últimos dias da guerra no Norte da Alemanha e experimentou os bombardeios ingleses.
Em 1951, seus pais partiram para o Oeste. Müller não os acompanhou. Perguntaram frequentemente a ele por quê. As respostas variavam: "Os impostos são menos pesados no Leste", "aqui, eu sou o primeiro, já que os outros foram embora". Finalmente, sua resposta mais sincera foi: "Você perguntaria a um francês por que ele permaneceu na França?".
Ele viveu então em Berlim, começou a escrever, mas apenas em 1956, o ano da morte de Brecht, um texto seu, "A Cruz de Ferro", foi publicado, e já se orienta para o teatro. Com sua mulher, Inge, ele escreveu a primeira versão de "Der Lohndrücker" (O Achatador de Salários), que recebeu o Prêmio Heinrich Mann em 1959, mas, dois anos mais tarde, o ano da construção do Muro de Berlim, sua nova peça, "Die Umsiedlerin" (A Emigrante), foi proibida.
Ele foi excluído da União dos Escritores. Em seguida, sua mulher se suicidou. A partir de então ele parece se deslocar de sua época, passa a falar dela de viés, por intermédio dos antigos, de Shakespeare, dos gregos.
Seu teatro começou a ser conhecido mais no Oeste que na ex-Alemanha Oriental, onde aliás sua adaptação de "Macbeth", publicada em 1971, foi proibida por crime de "pessimismo histórico" -acusação habitual, sobretudo em relação a "Quartett", na qual se vê Merteuil e Valmont, os personagens de "As Ligações Perigosas" (romance de Choderlos de Laclos), se encontrarem em um "bunker", após a terceira guerra mundial. Ao que Müller respondeu que imaginar dois sobreviventes após uma tal guerra seria uma prova de otimismo...
Müller apoiou publicamente Biermann e os outros, mas permaneceu na Alemanha Oriental. Mesmo morando em um conjunto habitacional sem graça, levou uma existência relativamente privilegiada. Viajou aos EUA, ao Brasil (leia texto abaixo), pela Europa.
Em 1989, ele disse que, enquanto estivesse vivo, o Muro de Berlim não desapareceria. Talvez porque o Muro construiu sua existência, e que, mesmo destruído, ele pesasse em suas memórias. Sem ser um nostálgico da Alemanha Oriental ("nós não éramos senão o negativo do capitalismo, não a alternativa a ele"), Müller confessou ter acreditado "até um certo ponto" na utopia socialista.
Em todo caso, ei-lo uma vez mais em uma situação ambígua: nomeado presidente da Academia de Artes da ex-Alemanha Oriental ameaçada de fechamento, é outra vez "recuperado". Aceita contudo o cargo para "assumir uma obrigação, tentar uma transformação fundamental. Há coisas a salvar, nem que seja a experiência de fracasso. O fracasso, traço comum da intelligentsia do Leste".
Esta nova tarefa lhe serviu talvez de álibi, porque ele não escreveu mais. Como a maior parte dos intelectuais e notáveis que conheceram a glória na Alemanha Oriental, ele foi coberto de insultos. Foi acusado de ter sido informante da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Ele reconheceu ter tido contatos, aliás inevitáveis na posição que ocupava: "Pediam-me minha opinião sobre tal ou tal assunto. Eu sabia que não falava ao Exército da Salvação, e eu devia saber quando era preferível mentir".
No mesmo ano, foi nomeado para a direção do Berliner Ensemble. "Ele é o único sucessor possível de Brecht", declarou Mattias Langhoff, com quem ele dividiu o poder, bem como com dois homens do passado, Peter Palitsch e Fritz Marquard, além de um homem do Oeste, Peter Zadek.
O velho teatro estava cheio de contas a prestar com a história. Langhoff saiu primeiro. Zadek, depois. Müller foi operado de um câncer do esôfago. Em 1994, foi a Taormina (Itália) para receber o Prêmio Europa. Disse que recebia "as homenagens como punhados de terra sobre (meu) túmulo". Depois, acrescentou: "Mas o dinheiro do prêmio vai me ajudar a viver mais algum tempo".

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