São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Casaco, óculos, charuto e um lugar em cima do muro

CHRISTINE RÖHRIG
ESPECIAL PARA A FOLHA

A baixa estatura, a postura hermética, o casaco preto de todos os dias, os óculos de armação escura não acusavam -exceto pela testa branca descomunal, que, qual tela de cinema, projetava idéias em ebulição, emitidas pelo crânio em 16mm, e pelo charuto enfiado em sua boca- tratar-se de Heiner Müller, o "Dramaturg", que, apesar de tanto ter provocado as duas Alemanhas, desde a origem da Alemanha Oriental até a reunificação, foi um dos poucos a ter permissão de transitar livremente entre elas. Para ele, o muro de fato não representava limites.
Seu estilo de acender uma vela a Deus e outra ao diabo fica claro na análise de sua obra. A peça "O Achatador de Salários", concebida por ele como peça didática para servir à construção do socialismo e encenada diversas vezes em 1958 e 1959 na ex-Alemanha Oriental (RDA) com essa finalidade, provocou, a certa altura, a ira do partido e foi proibida por longos 29 anos. Motivo: frases indesejadas ribombavam nos ouvidos dos camaradas:
Bessa -Então é assim. A gente se arrebenta, se mata de trabalhar, 30 anos tomando paulada nas costas, comendo que nem cachorro e dando duro que nem cavalo. E agora: sabotador! Então esse é o Estado Proletário de vocês? Vocês não são melhores que os nazistas.
Diretor (explodindo) - Repete isso.
Bessa - Eu disse que vocês não são melhores que os nazistas...
Lamentava o fato de o socialismo ter-se instalado na Alemanha pela força dos tanques T-34. Mas, em 1986, escreve um texto onde se lê: "Os tanques, nosso último argumento", e em 1953, em "A Parteira", troca a palavra "Sowjetarmee" (exército soviético) pela palavra "Sowjetamme" (ama soviética). Os tanques russos tinham para ele, agora, um significado positivo -vencedores do nazismo e parteiros da República Democrática Alemã.
Em 1988, quando veio ao Brasil, cumpriu obedientemente uma agenda bastante eclética, que incluía debates, idas ao teatro (assistiu a "O Processo", de Gerald Thomas, "Hamletmachine" e "Eras", de Márcio Aurélio, "Louco de Amor", de Hector Babenco), visita ao viveiro de cobras do Butantã, além de diversas palestras e acontecimentos sociais.
Em uma palestra no Instituto Bertolt Brecht, após responder a todas as perguntas, passou a questionar os cartazes que estavam afixados na parede, cheios de palavras-de-ordem socialistas que, naquela altura, para qualquer observador isento, já há muito haviam perdido o significado.
O comentário provocou uma imediata e constrangida retirada dos tais cartazes e a pronta correção "à caneta" dos dizeres dos que ainda restaram na parede. Em Blumenau, participou de um jantar oferecido por tradicional família local, em que, para nosso espanto e dos anfitriões, passou a noite contando piadas. Visitou Oscar Niemeyer e, depois de ganhar um esboço do nosso renomado arquiteto, comentou: "Isso aqui vai valer uma fortuna no futuro".
Em outro momento, foi flagrado sussurrando aos ouvidos do tradutor Marcos Renaux ensinamentos que deveriam ser transmitidos a Gerald Thomas, se esse quisesse ser respeitado pelos alemães na condição de diretor estrangeiro: "Não fale alemão; faça uma cara de quem está prestando atenção ao que fazem no palco e, quando lhe perguntarem o que acha, feche os olhos, faça um ar pensativo e diga: 'There's something missing' (Está faltando algo)". Não sei se o recado foi dado. Se não, aí está.
Em duas semanas de convívio, aprendemos com ele algumas receitas de "comportamento" aplicáveis a todos os tipos de regime; passamos a entender o porquê de, após ser acusado em 1993 de ter colaborado com a Stasi (polícia secreta da RDA), em vez de negar o seu envolvimento, deu declarações como: "Eu usei a Stasi". Em entrevista à revista alemã "Der Spiegel", poucos antes da derrubada do Muro, Heiner Müller declarou: "Meu lugar é dos dois lados do front".
A palavra "não" não fazia parte de seu discurso. Para ele, tudo era "sim" -significando ora uma coisa, ora outra. Jamais escrevia cartas e dizia que a origem de seus textos era a literatura (Brecht, T.S. Eliot, clássicos gregos e romanos e muitos outros) e, principalmente, os sonhos. Nada da realidade, nada extraído do concreto. Talvez por isso não escrevesse cartas. Cartas são documentos, levam uma assinatura. Textos e peças são fantasia. Fantasia, apesar de engajada, não compromete. Essa maneira de ser possibilitou que transitasse por toda parte sem constrangimentos.
Müller também profetizou o destino da humanidade: "Chegará o dia em que a elite toda poderosa se autocatapultará para outro planeta, talvez para a Lua e, lá do alto, irá comandar os 'excluídos' (eu, talvez?) que ficarão aqui na Terra, trabalhando em regime escravocrata". Quem sabe ele não tenha morrido, apenas apertado o tal botão "eject". Ou, quem sabe, agora, seu lugar seja dos dois lados do purgatório (limbo?).
Com seu saber e sua postura, lá de cima do muro, divertia-se com nossa falta de experiência, com nossa ingenuidade, com nosso novo mundo. Suas peças, fortes, polêmicas, contundentes, com o passar dos anos talvez não guardem nem transmitam um retrato fiel de seu criador: alguém que, acima de tudo, se divertia, que conhecia e apontava o lixo humano e sabia rir dele.

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