São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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O mundo da utopia

MARCOS RENAUX
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando lhe perguntaram a respeito de sua experiência na direção do Berliner Ensemble, Heiner Müller não hesitou: "Com tanto planejamento e improvisação convivendo neste teatro, é melhor responder à pergunta com uma parábola: um caubói entra num 'saloon' carregando um balde vazio e pede que o encham de uísque para seu cavalo; volta depois de cinco minutos com o balde novamente vazio e pede que o encham outra vez. Na terceira vez, quase compadecido, o barman pergunta se ele, caubói, não gostaria de tomar uma dose. 'Não, não', responde o caubói, 'ainda tenho de cavalgar' ".
Assim era Müller. Suas respostas raramente eram diretas, a parábola e a piada eram frequentes, sempre havia um desvio para uma história, uma alusão a qualquer evento que teria relação imediata com aquilo que se discutia. Sua obra também é cheia de parábolas; frequentemente lúgubre, quando engraçada é, pelo catastrófico do tema, muitas vezes dúbia, outras tantas indecifrável e até mesmo insuportável, como já se disse. Imagino que um bom motivo para que sua obra tenha sido assim se encontre no fato de a extinta República Democrática Alemã (RDA), por razões políticas, ter privilegiado a palavra, em oposição ao que era feito na outra Alemanha, onde ator e cenografia eram o centro do espetáculo teatral.
Os textos de Müller são colagens, reduções, ampliações, deformações, empilhamentos de estilos e conteúdos, enfim, são o que costumamos identificar como arte moderna; concentrou-se na criação de textos teatrais, diversamente do que ocorreu na parte ocidental, onde a preocupação dizia mais respeito a estilos interpretativos e ao aperfeiçoamento do ilusionismo cênico. Era portanto onde podia, onde tinha de trabalhar: a palavra, o texto engajado. E brilhava, porque era gênio, porque destruía, pela exposição ao ridículo e ao fantasmagórico, a alma nazista do comunismo, para o qual, afinal, trabalhava; e isto com um texto que, segundo lhe relatou Christa Wolf ao descrever um encontro que tivera com um membro do comitê central, não provocava sustos: "O Müller? Este não incomoda, ninguém entende mesmo o que ele escreve".
Uma demonstração bem recente dos caminhos opostos que trilhavam os dois mundos teatrais das Alemanhas foi a saída de Peter Zadek do comando, que dividia com outros quatro, inclusive Müller, do Berliner Ensemble. Não faltaram acusações mútuas de fascismo. Para Müller, além do motivo já exposto, isto é, do conflito imagem e movimento do ator versus palavra educativa, ainda que sonhadora, havia outro que teria determinado o fracasso do modelo de administração a cinco mãos: o teatro se enraiza sempre em formações sociais passadas e, por este motivo, é antes feudal que burguês.
Assim, não pode haver democracia no teatro, e este feudalismo, dizia ele, teria sido muito mais disseminado na antiga Alemanha Ocidental. Os diretores na RDA nunca foram poderosos, sempre tiveram o Estado pelo cangote, ao contrário do que ocorria do outro lado do muro. Müller, via nesse processo de reestruturação do Berliner Ensemble, nessa briga com Zadek, um reflexo exato do que era a reunificação das duas Alemanhas: "No começo, manifestávamos curiosidade um pelo outro, mas, quanto mais nos conhecíamos, mais queríamos distância".
O grande tema para Müller sempre foi a "questão alemã". Ouvi-o mais de uma vez citar Kleist, para quem os alemães querem sair de si próprios, só que nesse movimento resvalam nas fronteiras. Perguntado se o fato de a maior parte de seus escritos tratar de temas nazistas seria indicativo de que o nazismo é um assunto específico do teatro alemão, respondia que não, que o único assunto especificamente alemão eram os nibelungos.
Auschwitz não terminou e jamais terminará, por isso interessa a todos. A razão da agressividade alemã seria muito simples: os alemães sempre chegaram atrasados, especialmente no que se refere à divisão do mundo. Enquanto Frederico, o Grande, fazia suas guerras regionais, os franceses e os ingleses dividiam o mundo. Quando se tem colônias, o potencial de agressividade de uma nação divide-se por todo o mundo, mas na Alemanha esse potencial ter-se-ia mantido concentrado.
Auschwitz, dizia ele, é o modelo deste século para o princípio da seleção. Não é possível que todos sobrevivam, portanto são feitas seleções. E como é possível, num mundo desses, ter-se alguma esperança? A resposta poderia estar, dizia, numa pequena história de que sempre se lembrava: em um dos últimos navios que partiu para os Estados Unidos com refugiados judeus a bordo, havia um jornalista de esportes. O navio foi torpedeado por submarinos alemães e afundou. É claro que havia menos lugares nos salva-vidas que pessoas a bordo. O jornalista já estava sentado num dos barcos quando aparecem uma jovem mãe e seu filho. Mas não havia mais lugar. O judeu baixinho e gordo joga-se para trás, para dentro do Atlântico, e assim surgiu lugar para a mãe.
É o problema Dostoievski, a questão Raskolnikof. Mesmo Dostoievski encontra, no fim, apenas uma resposta: misericórdia. Se partíssemos do princípio, dizia, de que Auschwitz é o modelo para a seleção, então não há qualquer resposta política possível. Talvez haja apenas uma resposta religiosa. O problema desta civilização é o de que ela não tem alternativa para Auschwitz.
Com seu característico tom sério-jocoso, especulava que talvez o próprio planeta Terra viesse a se transformar num imenso campo de concentração: as grandes empresas aeroespaciais, em conjunto com o capitalismo financeiro e industrial de ponta fariam uma joint-venture, que levaria esses eleitos a outro planeta ou a estações orbitais, de onde comandariam a massa ignara, escravizada, que permaneceria na Terra a seu serviço.
Charuto e uísque dando-lhe o apoio necessário, tinha planos já bem definidos para o Berliner Ensemble nas próximas duas temporadas: a primeira seria, e deverá ser, centrada em Müller, "para trabalhar teatralmente a história da RDA, para que não seja simplesmente fechada e enterrada", e a seguinte centrada em Brecht. De suas próprias peças, estava para encenar, entre outras, "Germania 3 Espectros ao Redor do Homem Morto", em que põe em cena dois fantasmas conhecidos -Hitler e Stalin, além de outros menos conhecidos, como dizia.
Essa peça, que ameaçava escrever há anos, foi terminada e será encenada pela primeira vez, com direção de Hans-Joachim Schlieker. Pouco mais de um mês antes de morrer, escrevia sobre esses planos para o caderno "Vorhang Auf!" (Abram-se as cortinas!), suplemento teatral do jornal "Berliner Morgenpost", nos seguintes termos: "Teatro é essencialmente utopia, utopia em oposição à sociedade, que sempre tende para a entropia. É por isso também que a sociedade precisa do teatro: porque ele é a janela do mundo para a utopia, o lugar dos sonhos e dos desejos. Um de meus sonhos é planejar uma noite em que todos os integrantes do Berliner Ensemble contem todas as piadas de que consigam se lembrar. Espero encontrar um lugar para isso na agenda do teatro. Sonhos, possibilidade dourada..."

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