São Paulo, sexta-feira, 4 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Da necessidade de segurar o Santo Antônio

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Noite dessas, fui à copa beber água. Enfurnada em seu quarto, a empregada via um filme de mocinho e bandido na TV, em volume alto demais para aquela hora. Ia reclamar quando ouvi uma frase do diálogo que a entretinha: "Segura no Santo Antônio!"
Fiquei intrigado, liguei a TV do gabinete para ver que filme era e que Santo Antônio podia ser. Era um faroeste antigo, o mocinho ensinava a mocinha a andar a cavalo, volta e meia a aconselhava a se agarrar naquele calombo que em algumas selas dá mais firmeza aos iniciantes. E que por isso se chama Santo Antônio, sejam os povos católicos -que aceitam os santos- ou protestantes -que os condenam.
Que a nossa barra está pesada, está. Todos -oposição, situação, forças vivas da nacionalidade, reservas morais da nação, donas-de-casa, alto e baixo clero, produtores e consumidores- concordamos que a barra está pesadíssima. A cada dia somos desafiados por diferentes problemas sem solução e por soluções que em si formam problemas. Para citar o Eça, têmo-la boa, a situação.
Em horas tais, seja a aflição do espírito, seja o desvario da carne, os tratadistas aconselham a meditação e a prece. Em momentos mais agudos, nem há tempo para meditar ou orar. O remédio é seguir o conselho do filme: segurar no Santo Antônio.
Exemplo: o sujeito está instalado na primeira classe de um jumbo, voando para Nova York ou Paris, pode passar a noite tomando champanhe com canapés de caviar. Na classe turística servem peru com farofa. De repente aquilo tudo desaba, o avião explode, o sujeito se mistura ao caviar e à farofa, não há clima para meditar porra nenhuma, muito menos rezar. E olha que morrer lambuzado por caviar ou farofa é castigo que talvez não mereçamos.
Pior: nem há um Santo Antônio para a gente segurar. E, se houvesse, não sei se Santo Antônio teria empenho em nos segurar a nós, brasileiros. O que fizemos com ele, ao longo dos séculos, não se faz com nenhum vigarista, muito menos com um santo de seu porte e grandeza. Começa que, santo antigo, nascido, vivido e morrido no século 11, quando o Brasil ainda nem existia, mesmo assim o santo sentou praça no Exército brasileiro.
O nutrido livro do acadêmico e ex-ministro José Carlos Macedo Soares ensinou-me que Santo Antônio era membro de nossas Forças Armadas e recebia soldo. Na Bahia, era tenente-coronel, em Goiás, capitão, em São Paulo, coronel. Para compensar, na Paraíba era soldado raso, embora major em Santa Catarina. Aqui no Rio é também tenente-coronel e, em Minas, simples capitão. Durante a Guerra dos Palmares, Dom João da Cunha Souto Maior (ou Mayor) mandou Santo Antônio se alistar e Dom João 5 o promoveu a tenente em 1717.
Dando baixa do serviço militar, nem assim Santo Antônio ficou livre das desditas que afligem o brasileiro comum. Vamos encontrá-lo vereador em Iguaraçu e suplente de senador em Montes Azuis. No final do século passado, Santo Antônio foi processado como latifundiário na Bahia, por ainda manter escravos na Fazenda de Queimadas. Respondeu a juízo e foi condenado à revelia, perdendo bens e sendo obrigado a pagar juros e despesas cartoriais.
No Rio, era dono de um morro que entupia o centro da cidade, provocou a queda de vários prefeitos. Adolfo Bergamini, Carlos Sampaio, Pedro Ernesto, Mendes de Moraes e João Carlos Vidal, em diferentes épocas, convocaram o santo em editais publicados no "Diário Oficial". Como as partes não chegaram a um acordo, o morro ficou com o santo e os prefeitos sem a prefeitura, pois foram demitidos e um deles (Pedro Ernesto), preso como comunista.
Depois de tantas vicissitudes, nada demais que o santo, bem antes do general De Gaulle, não leve o Brasil a sério. E De Gaulle não passava de um general francês, enquanto Antônio, que na realidade se chamava Fernando, pregara aos peixes em Rimini e ressuscitara um morto. E até hoje -segundo minha empregada pode confirmar- é invocado toda vez que a mocinha está para cair do cavalo.
Vilipendiado ao longo do tempo, é natural que ele não nos acuda em nossas necessidades. Fica difícil achar um suplente para ele, um santo com as suas qualidades e a sua eficácia.
Consultei o "Flos Sanctorum", edição de 1795, que herdei de meus maiores, e lá encontrei, ao lado de um São Pancrácio, mártir e confessor, um tal de Santo Agnaldo, que foi apenas mártir, nascido em Siracusa. Decapitado por ordem do imperador Dioclesiano, tornou-se notável como protetor das viúvas e das colheitas.
A vantagem desse santo é que, protegendo viúvas e colheitas, ele não protege oficialmente nem oficiosamente país algum, está dando sopa. Na febre reformista que atinge governo e Congresso, já que vamos emendar a Constituição, creio que será de suma prudência incluir um artigo, parágrafo ou alínea que nos coloque sob a proteção desse Santo Agnaldo. O pior que pode acontecer é continuarmos na mesma.

Texto Anterior: 'Ciclista' procura via fácil
Próximo Texto: Poeta polonesa vence Prêmio Nobel
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.