São Paulo, quarta-feira, 9 de outubro de 1996
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A novidade que vem do campo

RUDÁ RICCI

Jorge Castañeda, em seu livro "Utopia Desarmada", concluía que o Exército Zapatista de Libertação Nacional encerrava uma novidade em relação à prática tradicional dos movimentos guerrilheiros latino-americanos: exigia a ampliação das benesses das políticas públicas, exigia cidadania e governo mais democrático, mas não desejava o poder.
Para o autor, a novidade está justamente na emergência de um movimento organizado de esquerda que não rompe totalmente com as regras do jogo democrático.
Essa análise causou grande controvérsia em alguns meios acadêmicos e em círculos de lideranças e intelectuais de esquerda.
Com efeito, os zapatistas produzem um discurso de tipo novo. Na sua declaração realizada no 1º Encontro Internacional pela Humanidade, Contra o Liberalismo, perguntavam: "Como se sonha a alegria na África? Qual música dança o sono americano?" É, realmente, um início de documento pouco familiar ao jargão da esquerda armada e se inspira, obviamente, na simbologia indígena.
As controvérsias são sempre positivas. Entretanto, Castañeda sublinhou a necessidade de ouvirmos mais atentamente as novidades que surgem no meio rural, especialmente em algumas regiões latino-americanas. O caso brasileiro, nesse sentido, é exemplar.
Nos anos 80, surgiram inúmeros movimentos sociais rurais que romperam com o corporativismo dos movimentos sociais urbanos, incluindo o sindicalismo.
O Conselho Nacional dos Seringueiros, o Movimento de Atingidos por Barragens, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento de Defesa da Transamazônica, todos tinham em comum a tentativa de elaboração de pauta regional, propondo modelos de gestão e desenvolvimento alternativos aos vigentes.
Envolviam mais de uma categoria em mobilizações e formas organizativas, de professores a trabalhadores rurais, e ampliavam consideravelmente o seu território de atuação.
No início dos anos 90, muitas dessas organizações evoluíram para novas formas de relacionamento com o Estado. Pipocam pelo norte do país fóruns de elaboração de políticas públicas constituídos por ONGs, agências estatais e entidades de representação política.
Esse é o lado dos movimentos sociais rurais não revelado pela imprensa brasileira: a formulação de mecanismos de gestão pública e a proposição de uma reforma democrática do Estado.
Experiências recentes vão ainda mais além. No norte do Paraná, há uma experiência inédita de parceria do Estado com ONGs e entidades de representação de trabalhadores rurais na execução de um programa de alfabetização de bóias-frias; na região de Salto Caxias, produtores familiares elaboram um programa de reassentamento a ser executado pelo governo estadual, após terem sido desapropriados para a construção de uma hidrelétrica; em São Paulo, agentes pastorais uniram-se ao Ministério Público para fiscalizar o trabalho de menor no meio rural; em Minas, foi constituído um Fórum de Desenvolvimento Rural Sustentado, unindo entidades na formulação de um programa estadual de desenvolvimento agrícola.
E é de Minas Gerais que surge uma outra situação inédita. Tendo por base o aumento da tensão social no campo, a Assembléia Legislativa do Estado decidiu organizar um seminário para elaborar o programa agrário estadual.
Durante cinco dias, mais de 700 pessoas participaram do evento, envolvendo representantes do governo (Incra, Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários e Emater, entre outros), dos empresários (CNA, Faemg), de trabalhadores (MST, CPT, Fetaemg) e algumas dezenas de ONGs, universidades, prefeituras e câmaras municipais.
O documento final acolheu todas as propostas apresentadas, mesmo as não-consensuais, contemplando sugestões que têm como temática a elaboração de modelos de reforma agrária, formas de gestão e destinação de terras devolutas, papel do Judiciário e políticas sociais.
A metodologia do seminário e a participação massiva revelam um dado novo. Embora as diferenças políticas permaneçam, os movimentos sociais rurais demonstraram uma predisposição em superar um dogma dos anos 70: a desconfiança em participar de fóruns institucionais.
Os movimentos sociais deste final de século parecem destacar a necessidade de ampliação dos mecanismos de gestão pública, de controle das ações governamentais.
Talvez o que Jorge Castañeda estivesse sugerindo não fosse a falta de apetite político dos movimentos sociais rurais mexicanos, mas a compreensão da nova lógica política dos movimentos rurais, que propõem que o Estado seja concebido como palco aberto às disputas políticas, por meio das quais serão formuladas regras comuns de controle do mercado.
A democracia parece ganhar com essa novidade.

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