São Paulo, quarta-feira, 9 de outubro de 1996
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Shopping Iguatemi realiza socialismo dos ricos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Shopping Center Iguatemi completa 30 anos de existência. A notícia contrasta com uma interpretação de críticos em urbanismo, segundo a qual os shoppings "não envelhecem". Com efeito, renovam-se, mostram-se sempre limpos e modernos, ao passo que as ruas comerciais vão se deteriorando e poluindo.
Cito um livro organizado por Silvana Pintaudi e Heitor Frúgoli Jr., "Shopping Centers - Espaço, Cultura e Modernidade nas Cidades Brasileiras", editora Unesp. Há ali a idéia de que o shopping center se constitui como um espaço isolado, como uma ilha de sociabilidade burguesa, onde mendigos não entram, onde não chove nem faz sol, onde sequer o tempo passa.
Há uma ausência de relógios nos shoppings centers, observa Heitor Frúgoli. Mesmo o enorme relógio d'água no Iguatemi -um complexo mecanismo, logo na entrada, encenando em retortas de vidro e águas coloridas a passagem do tempo- "se insere na lógica do espetáculo"; é menos um registro das horas e mais um brinquedo, uma máquina visual a fazer do tempo gasto no shopping um escoar viscoso e dinâmico, diligente e distraído.
O tempo, nos shopping centers, está aí apenas para ser gasto, assim como o dinheiro que tenhamos no bolso. O shopping é mais um lugar de lazer que de consumo, se é que podemos separar uma coisa da outra.
Mas o fato é que o Shopping Iguatemi está completando 30 anos de idade. Envelheceu? Certamente não. Está mais "moderno" do que nunca, mas as pessoas de minha geração não deixam, imagino, de sentir certa estranheza quando entram nesse palácio.
O Shopping Iguatemi foi inaugurado em 1966. Comecei a frequentá-lo alguns anos mais tarde. Só na década de 80, dizem os autores do livro citado acima, a onda dos shoppings tomou São Paulo. Criaram-se então edifícios apertados, escuros, estreitos, recobertos de mármore e de vidro fumê, como o Eldorado, o shopping Morumbi.
O Iguatemi seguia um modelo mais austero, mais aberto como paisagem. Eram amplos corredores, um vasto pátio onde aparecia a Floricultura Rinaldi, clarabóias, pisos largos de cimento. Seu modernismo arquitetônico era um modernismo de clube, horizontal como uma beira de piscina, limpo como pedras de construção, feito de lajotas frias.
O Iguatemi nunca teve o cafajestismo dos shoppings posteriores. De certo modo, era como o governo Castello Branco em comparação com Figueiredo. Não se pode imaginar o marechal Castello Branco usando óculos escuros; do mesmo modo, o Iguatemi, inaugurado em 1966, desconhecia os vidros fumê.
Era um shopping mais arejado, com mais desperdício de espaço, que os posteriores. O Ibirapuera, o Eldorado, o Morumbi, são mais sufocantes, deixaram a estética do clube para adotar a estética do elevador, do aquário, da câmara de gás.
Não quero com isto fazer o elogio do shopping Iguatemi. Não só por que, depois da reforma em finais dos anos 80, buscou ser pós-moderno e brilhante (o arco em sua fachada, os corrimões dourados no labirinto recém-criado de seus múltiplos salões de fast-food).
Mas principalmente porque, em 1966, o Iguatemi já mostrava o futuro odioso e kitsch que viria a seguir, com os outros shoppings.
Parto de uma constatação óbvia. Todo o "desenvolvimentismo" depois de 64 foi baseado numa lógica de exclusão. Ficamos próximos do primeiro mundo à medida que nos cercamos, em condomínios fechados, e nos isolamos do subdesenvolvimento circundante.
O shopping Iguatemi foi a primeira ilha "primeiro-mundista", a seguir-se de outras, cada vez mais fechadas ao mundo exterior. Do mesmo modo, a ditadura de 64 teve de endurecer-se com o passar dos anos. Hoje, o governo Castello é tão legal quanto o de FHC, e o shopping Iguatemi ganha ares de praça Villaboim.
Claro, é um conforto. Não há mendigos, não há gente feia, não há camelôs quando passeamos no shopping.
Consumimos não apenas a roupa de grife , mas também a ausência de subdesenvolvimento; o shopping é uma disneylândia onde encontramos nossos iguais.
Eis o que está sendo vendido ali: mais do que produtos, uma ilusão urbana, de segurança e de igualdade racial. Estamos todos fruindo de uma igualdade iguatemítica -o jogo de palavras, igual/iguatemi, foi explorado por Frúgoli no livro que citei.
É como se vivêssemos numa cidade asséptica, sem ruas, sem trânsito, onde a "prioridade ao pedestre" não nos custasse desconforto. O shopping center realiza o socialismo dos ricos.
Acho que estou sendo um bocado óbvio, mas não resisto à comparação com o modelo brasileiro de desenvolvimento, de 64 até hoje. Cria-se um paraíso para os mauricinhos e patricinhas, um ambiente de primeiro mundo, preservado das intrusões da pivetagem graças aos vigias uniformizados. A rua é real, mas o shopping é a utopia em estado de consumo.
Não é apenas o consumo dos produtos, das lojas, o que ali se oferece. Cada pessoa desfila nos corredores do shopping como se fosse, ela própria, um objeto à venda. A burguesia se vê, linda, no espelho desse espaço.
Não por acaso, as comemorações dos trinta anos do Iguatemi incluem a possibilidade de que o consumidor venha a ser fotografado por Bob Wolfenson. A juventude dourada capricha para ser vista, e nada disso parece escandaloso.
Na passarela do Iguatemi, essa juventude prova-se mais "limpa" e mais "pura" do que o mundo, afinal brega, do Ibirapuera ou do Shopping Center Norte. Cria-se uma tradição iguatemística, a da classe rica do Alto de Pinheiros, beneficiária dos anos 70, contra os recém-enriquecidos de Moema ou da Mooca.
Estes são mais temerosos, mais mesquinhos, mais cercados que os antigos burgueses do Shopping Iguatemi. A história dos shoppings seguiu a história da cidade, intensificando, escurecendo o ambiente da exclusão social. O otimismo aberto e granítico, largo e polido do Iguatemi cedeu lugar à escuridão espelhada, ao aperto assustado dos shoppings Eldorado ou Morumbi.
Ms o processo sempre foi o mesmo -o processo da exclusão. Aos trinta anos, o Iguatemi está novíssimo. Pois representa a idéia de modernidade que nos alimenta desde 64, ou seja, a ilusão de estarmos numa ilha em Miami enquanto o resto, o que está fora, a rua, o camelô, o mendigo, a lojinha, bem, são apenas acidentes de percurso.
Nosso percurso vai, triunfante, rumo ao futuro. Talvez seja uma boa idéia para um candidato a prefeito imaginar um metrô direto de AlphaVille ao Shopping Iguatemi. O povão, bestificado, aplaudiria essa nova obra.
O caminho para o futuro passa pelas comemorações dos trinta anos do Iguatemi, pois significa, basicamente, a utopia de que nós, burgueses, não estamos velhos demais. Ao contrário, o projeto de 64 está mais jovem e charmoso do que nunca.
Mais do que nunca, o futuro está no primeiro milk-shake, no primeiro LP, na primeira minissaia, no primeiro arranjo de flores de Rinaldi que nos maravilharam, e que consumíamos em 1966, época de pureza moral da burguesia pinheirense, no shopping Iguatemi; e que revivemos agora, num exibicionismo para Bob Wolfenson, ao mesmo tempo cínico e nostálgico.
Trinta anos depois, continuamos enxutinhos e fotogênicos.

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