São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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O capital e a nova ordem

DO ENVIADO ESPECIAL

Falta uma compreensão geral do processo geral de mundialização, diz FHC. A seguir, o presidente faz uma análise dos riscos envolvidos nessa mudança, e frisando que faz um "balanço informal", mostra sua visão da globalização econômica e da nova ordem mundial.
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Folha - O economista francês François Chesnais, em "A Mundialização do Capital", define a mundialização deste modo: que ela se dá, cada vez mais, com a preponderância dos investimentos diretos do exterior, que esses investimentos diretos estão concentrados nos países centrais -o que ele chama de "tríade": EUA, União Européia e Japão-, e que há cada vez mais barreiras aos produtos dos países em desenvolvimento para entrar na tríade. Que há um nítido recuo das transferências de tecnologia para os países em desenvolvimento, do centro para a periferia, que, em resumo, a mundialização é excludente.
FHC - Não, isso é a visão catastrofista. Não corresponde à realidade. Se você for ver o que está acontecendo com o investimento direto é o oposto. A mudança foi essa. O capital vai para a China e para os países emergentes, em grande quantidade. Por uma razão muito simples: você tem um capital excedente no mundo, "sobrante". E a lucratividade é muito maior na periferia. A taxa de lucro recomenda que se diversifiquem os investimentos. A visão dele é, digamos, antimarxista. Na visão de Marx, o sistema tenderia a se homogeneizar, tenderia a se espalhar, justamente por esses motivos que mencionei.
Pode haver exclusão, como disse a você. Alguns setores amplos da África não entram na mundialização. Alguns setores da América Latina não estão entrando. Acho que o Brasil tem chances de entrar. Entrar significa: ter proveito, aumentar a força produtiva, se desenvolver.
A visão de Chesnais, segundo a descrição que você me faz dela, é catastrofista e equivocada, o que não quer dizer que certos países sejam excluídos do processo.
Folha - Para Chesnais, e para várias pessoas como ele, países, como a Coréia, não estavam prontos para entrar na mundialização, no começo dos 80, não vão entrar...
FHC - É o pensamento que vê a história como um processo fechado, já determinado. Evidentemente, se o Brasil não tivesse estabilizado a moeda, aí ficaria atrasado. Quando a Coréia começou a se desenvolver, toda a crítica da esquerda, minha inclusive, era de que o país se transformara numa plataforma de exportação. Não se viu que havia outro processo em curso. Aquele tipo de desenvolvimento era criticado. Agora, vão dizer de novo que se está perdendo o bonde da história. Não está. O Brasil não está perdendo, a Coréia também não. Outros estão. Mas o bonde da história passa de novo.
Folha - O sr. disse que, de vez em quanto, tenta um esboço de síntese do processo de mundialização.
FHC - Evidentemente sei de minhas limitações, na minha condição atual, para ter uma produção intelectual consistente, para esboçar uma síntese.
O que você me descreveu desse rapaz (Chesnais) é uma tentativa de síntese, no nível mundial. Mas acho que ele está olhando para trás. Mas, pelo menos, coloca os problemas, sempre desafia você a pensar um pouco mais.
Acho que, na fase atual do desenvolvimento capitalista, está faltando realmente alguém que explique e analise as regras de seu funcionamento: do sistema financeiro, do capital em estado puro, universalizado, desligado do Estado, portanto também da nação, e até mesmo da decisão do dono do capital.
Para minha surpresa -mandei fazer estudos sobre isso- os dados mostram que o grande capital continua sendo familiar, às vezes pessoal, e de corporação. Familiar, esse capital, que flutua. O fato de ter esse vínculo de relação de propriedade de família não implica que as decisões sobre o investimento sejam tomadas aí. É complicadíssimo entender hoje como funciona esse processo de decisão. Até um certo ponto, o capital ganhou uma autonomia frente ao real, em relação a tudo.
No que isso vai dar? Como é que isso se regula -se é que se regula? Pode haver uma crise por aí? Se houver, o que é que se faz? As instituições mundiais -FMI, Banco Mundial- são muito tradicionais, para não falar em bancos centrais, diante desse capital financeiro selvagem. Isso é um problema para todos.
Folha - Então, talvez devesse existir uma nova regulação desse capital. Surgiria como? Quem seriam os sujeitos, o motor? Estão ocorrendo algumas reações. Houve a reação na França no ano passado e esse ano, duas manifestações na Alemanha, com mais de 200 mil pessoas, fora a Argentina e o "apagón".
FHC - Isso não é nada.
Folha - Nada?
FHC - Isso é normal, no contexto. Tem que haver reação. Na Argentina, porque o desemprego chegou a um nível muito elevado. Na Alemanha é outra história. Tiveram de quebrar o sistema de previdência social. O problema não é da reação, é da alternativa. Se não fizer (a reforma), o que acontece?
Folha - E se fizer? Vai estourar?
FHC - Pode, não vou dizer que vai. Mas não creio que seja esse o problema. Não acho que esteja na crise social, na política social, o problema desafiador.
Folha - Esses não são sinais de que é preciso tomar providências?
FHC - Não sei, não quero ser taxativo nesse ponto. Evidentemente, depois da crise do México, nenhum país repetiu o México. Depois da crise do desemprego na Argentina, nenhum país vai deixar ocorrer o mesmo. Claro, vai tentar não deixar ocorrer. Você aprende com a história. São sinais, é preciso reagir. Mas o que pode ocorrer mesmo de grave é a desorganização do sistema produtivo. A crise financeira pode provocar a desorganização do sistema produtivo, recessão.
Hoje há mundialização do capital financeiro, mas sem a mundialização do poder. Não há governo mundial, não há instrumentos para controlar esse processo. E o que havia de arremedo de governo mundial, que é a ONU, ficou pequeno diante desse desafio e está em choque, aliás, com o país que tem mais influência, os Estados Unidos. Os EUA estão dizendo que o governo mundial não vai ser a Assembléia Geral da ONU. Por que os EUA não o querem é evidente. Voto da maioria? Que é isso?
Por que fico danado quando dizem que toda a minha política exterior é ter um lugar no Conselho de Segurança? Porque isso é bobagem! Não quero um lugar no Conselho de Segurança para o Brasil. Quero que o Brasil participe da reconstrução da ordem mundial. Ficar no Conselho de Segurança na velha ordem não adianta nada. São necessários novos mecanismos, que dêem mais participação a mais países. Dito isto, ninguém foi capaz, nem eu sou, de dizer como se resolve essa questão das "regras de governança" em nível mundial. Não tem problema se não houver tropeço grande do sistema financeiro. Aí está: você tem um conflito aqui, outro ali, mas não dá uma crise maior. Mas, e se der?

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