São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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A nova esquerda de FHC

DO ENVIADO ESPECIAL

Existe uma nova esquerda, teorizada por pensadores como o historiador marxista inglês Eric Hobsbawm e pelo jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio, segundo Fernando Henrique. E ele se inclui nela. Esse novo projeto crítico da sociedade não pretenderia mais mudar o modo de produzir -do capitalismo para o socialismo-, mas procuraria universalizar direitos e bens dentro da sociedade de mercado. FHC explica a seguir o que, para ele, é essa nova esquerda.
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Folha - Num texto que o sr. escreveu em 1981 contra os adeptos de Michel Foucault (filósofo francês) e contra a "visão ingênua da política dos dominados", o sr. dizia que a "ideologia das classes dominantes mutila os dominados em seus saberes necessários à liberdade". Era uma crítica ao "basismo", à política de esquerda baseada nos "movimentos sociais", que esquecia a crítica ao Estado e cuja resposta à hegemonia burguesa estatal requeria uma utopia socialista.
FHC - Concordo inteiramente com a crítica aos basistas, esse pessoal que pensa que, estando do lado do povo de Deus, tudo bem, que a consciência ingênua é boa etc. Não, não acredito nisso.
Folha - Levantei esse ponto para fazer uma comparação. Nos programas do PSDB na eleição passada, havia uma ênfase muito grande nas parcerias sociedade-Estado, na participação da sociedade civil na gerência de programas sociais, na administração deles.
FHC - Isso.
Folha - Pode ser uma comparação atravessada, mas isso parece uma versão administrada da idéia dos movimentos sociais.
FHC - Veja, é mais complicado. O Estado hoje não pode dar conta de ocupar os buracos todos. É preciso que ele tenha uma articulação com a sociedade civil para que os projetos funcionem.
Você manda dar dinheiro a um programa social, coloca o dinheiro no Orçamento e faz com que esse dinheiro vá para o Banco do Brasil. Mas você não consegue fazer com que esse dinheiro chegue lá embaixo, na ponta. Por quê? Não é só com o Banco do Brasil, é a instituição Estado. No Brasil, ela foi feita só para ricos e, no máximo, para setores da classe média.
No ano passado nós utilizamos 30% dos recursos da Caixa Econômica Federal (CEF) para a casa própria. Por quê? Por que eu não quero, por que falta vontade política? Isso é análise de gente bocó, que vejo frequentemente. Gente bocó, completamente. O problema é que o presidente da CEF não tem os mecanismos para atender essa população que precisa da casa, pois a CEF não tinha sido feita para isso, foi feita para atender os empreiteiros, que depois não pagam à CEF. Essa mudança só ocorre se você conseguir elos lá embaixo, que façam com que haja cobrança de baixo para cima. É o que nós estamos fazendo.
Folha - Um "anel democrático"...
FHC - Um anel democrático, boa expressão. Isto é: cobrança de baixo para cima. O SUS só funciona se o conselho de saúde da comunidade funcionar, o que é difícil. Sozinha, a burocracia, daqui de Brasília, não faz as coisas.
Nós estamos dando dinheiro direto para a escola, o que nunca foi feito. Qual o objetivo: pular o prefeito, o vereador, o deputado, o secretário da Educação, para o dinheiro ir direto para a escola. No ano que vem é o conselho de pais e mestres das escolas que vai decidir o destino desse dinheiro.
As parcerias são isso. Isso é a maneira moderna, contemporânea, que você precisa, numa sociedade fragmentada, de massa e o diabo, para fazer o Estado chegar lá embaixo. Não se trata de acabar com o Estado, mas de fazer que ele não seja só dos ricos.
Folha - O que o sr. criticava no "basismo" era a falta de um pensamento sobre a intervenção crítica no Estado. No caso das parcerias Estado-sociedade civil, ela fica ali para administrar...
FHC - Isso não esgota naturalmente a função da sociedade civil. Isso é simplesmente uma forma de articulação para o Estado ser mais eficaz, para as classes populares...
Folha - Não esgota, mas os mecanismos de representação ainda deixam a sociedade distante do Estado, a sociedade parece não ter como intervir...
FHC - Acho que começa a ter, crescentemente. É uma luta aumentar o acesso. Toda a idéia do Comunidade Solidária é essa -não é clientelismo, é o contrário, é fazer com que os interesses das populações sejam atendidos...
Folha - Mas, voltando à questão da alternativa de poder: o sr. está sempre frisando que não há uma "classe portadora do futuro" que promova a grande mudança histórica. Se o sr. fosse um sociólogo do lado de fora do poder, como o sr. veria a alternativa crítica de intervenção no Estado?
FHC - Mas essas parcerias já modificam o poder. O poder está concentrado nas mãos de poucos e poderosos. O BNDES -não estou criticando, pois era outro momento da história- pegou todos os recursos e deu para poucos. Para fazer indústria de bens de capital, para fazer a indústria de base etc. Hoje, o BNDES dá recursos para a micro e pequena empresa, ele cria banco do povo. Isto é: ele muda -claro que ele continua sustentando a infra-estrutura, que é uma coisa do interesse de todos. Mas hoje setores que não tinham atendimento estão sendo levados em consideração.
Isso está fazendo com que o Estado comece a se preparar para não ser o Estado só de poucos. Você pode perguntar: quem é o sujeito disso? Quem é a classe que faz isso? Na sociedade atual há uma multiplicidade de ações.
Ponto dois: se não ocorrer essa expansão do atendimento, do acesso ao Estado, a sociedade descarrilha, capota. Isso é, portanto, de interesse -vou usar uma expressão complicada- geral. Embora atenda aos interesses específicos dos pobres, digamos assim, dos não-favorecidos em geral, se não atender o interesse geral, vai haver problema também para os favorecidos. Nas sociedades contemporâneas, ou você inclui mais, ou não tem como funcionar. Não pode haver exploração selvagem. Mudou o padrão de sociedade.
E há crítica sim. Qual é a crítica? A crítica permanente é à exclusão. O que é a esquerda hoje -a questão do Bobbio, do Hobsbawm etc.? A esquerda hoje são as tendências que levam à igualdade crescente, que universaliza programas.
O problema que tenho com certos setores da esquerda brasileira é que ela particulariza programas. Ela não quer educação para todos -ela vai dizer que quer. Mas quando mando um projeto que, para ser para todos, tem que ser menos para alguns, não aceitam. Ou o caso da saúde para todos. Para ser para todos, tenho que cobrar de quem pode. De outro modo não vai ser para todos. A esquerda a que me referi se defende. Diz: "Não, não, não, a saúde é um bem universal". Vira idealista no mau sentido, vira ideóloga.
Num artigo do Gustavo (Franco) e do Bresser, de que eu gostei, eles diziam: você está ou não está disposto a arriscar a ordem pela mudança? Pode-se dizer que não há um projeto alternativo do modo de produzir. A esquerda clássica pensava isso: sem mudança do modo de produzir não vai haver aumento do bem-estar.
Hoje, sem mudança do modo de produzir, está se buscando um aumento do bem-estar. Não se encontrou outro modo de produzir que fosse capaz de oferecer mais bem-estar. A falência do socialismo real levou a uma constatação de que tentar alterar o modo de produzir não resolve o problema.
A opção é tentar aumentar o bem-estar sem alterar o modo de produzir. Para aumentar o bem-estar é preciso universalizar os programas. É preciso estar disposto a arriscar a ordem em benefício da universalização.
Folha - Processo conduzido por um Estado ou governo "éticos".
FHC - Não se trata do Estado ou do governo -não sou hegeliano. A sociedade é que não aceita mais a idéia de injustiça. Diria a você que não é uma questão puramente ética. Há o problema da areia na máquina: se a sociedade for injusta, não vai conseguir produzir. A resposta ética é a mais fácil.
Folha - Mencionei o termo, porque nos discursos na Índia e no México o sr. tocou nisso...
FHC - É, mas a universalização da justiça não se deve apenas a uma razão ética. Para esse país ser capaz de entrar em um "novo mundo", no "próximo milênio", com força, ele tem que ser mais igualitário. Por mais que o burguês seja egoísta -e ele é, todo mundo vê o seu interesse-, é do seu interesse que haja mais igualdade. Não é só uma ética que paira, como uma dádiva da revelação. Interessa a todos. É mais complicado.

Continua à pág. 5-6

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