São Paulo, terça-feira, 15 de outubro de 1996
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Xenakis arquiteta melodias e ritmos simétricos impossíveis em "Ittidra"

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

ITTIDRA: parece um nome grego, como é de hábito para as composições do grego Iannis Xenakis. Mas neste caso é um simples anagrama de "Arditti", sobrenome indiano do primeiro violino e proprietário simbólico de um dos melhores quartetos de cordas da atualidade.
Com o reforço de mais uma viola e um violoncelo do Quarteto Alban Berg, o Arditti estreou a nova composição de Xenakis, dia 4 passado, na Ópera Velha de Frankfurt (Alemanha).
Aos 74, Xenakis é um dos mestres indisputados da disputada e mal-conhecida música contemporânea.
Autor de tratados matemáticos da composição, e de composições que não soam nada matemáticas, muito antes pelo contrário, ele é um dos poucos contra quem ninguém parece ter objeções: nem como homem, nem como criador.
Xenakis, hoje como há 40 anos, é um dos alentos da música, uma expressão original de vigor e honestidade.
Le Corbusier
Durante a Segunda Guerra Mundial, como membro da resistência anti-nazista na Grécia, Xenakis perdeu um olho em batalha e precisou fugir de seu país sob risco de morte.
Foi para Paris, onde trabalhou por muitos anos como associado do arquiteto Le Corbusier, enquanto tinha aulas de composição com Messiaen.
Arquitetura e música acabaram por se unir nas composições "estocásticas" de seu primeiro período, onde massas sonoras são controladas por equações de probabilidade.
O resultado, improvável mas caracteristicamente, é uma música direta, de grande impacto e personalidade.
"Galáxias" e "nuvens" de sons vão articulando esses dramas "delicadamente poéticos e violentamente brutais", como escreveu Messiaen.
Mais recentemente, nos últimos dez ou quinze anos, sua música vem se tornando cada vez mais carnuda, mais intensamente casada aos sons e ao segredo que eles trazem em si.
Gamelão japonês
Um bom exemplo, para quem quer escutar o compositor pela primeira vez é a obra para percussão.
"Pléiades", gravada pelo grupo Les Percussions de Strasbourg (e editada em CD pelo selo Harmonia Mundi), uma espécie de grande gamelão javanês transformado, em escalas microtonais.
Ou o segundo quarteto de cordas, " Tetras" (1983), gravado pelo Arditti (CD Disques Montaigne).O novo sexteto, "ITTIDRA", é um único movimento lento, alinhado com outras composições dos últimos anos no uso de acordes repetidos, saltos de registro e "placas" de som que vão se alterando gradativamente -regidas, neste caso, "pelas múltiplas mãos de um gigantesco Deus".
É uma música maciça, de ferro, mas que aos poucos deixa entrever sutilezas e bordaduras, a vida íntima de alguns acordes bem inventados.
Desregramento
Tocada com o afinco de costume pelo Arditti (que encomendou a composição e ao longo deste mês deve apresentá-la em Rouen, na Antuérpia e em Londres), ela é menos o "desregramento dos sentidos" de que falava o compositor há algum tempo do que uma nova regra da sensação.
É uma outra arquitetura, onde melodias e ritmos simétricos são tão impossíveis quanto uma rosácea fractal num frontão grego.
Uma audição só é pouco para dar conta dessa música. Numa primeira escuta, parece uma obra que não consegue escapar de sua inspiração.
A platéia em Frankfurt, depois de um momento de dúvida, aplaudiu com entusiasmo, mas isto decerto era menos aplauso do que militância.
Brahms
Descontado o currículo admirável de Xenakis, há que dizer, a seu favor, o seguinte: ladeando o novo sexteto, no programa, estavam os dois sextetos de Brahms, interpretados magnificamente por estes músicos, que tão raramente se dispõem a interpretara música do passado.
Também no concerto de Frankfurt estava Thomas Kakuika, o violista convidado, que deve ser um dos melhores músicos de câmara em atividade, e um expoente absoluto de seu instrumento, praticamente regendo os Brahms de dentro do sexteto.
Verve e paixão
Também presente estava Roham de Saram, o violoncelista do Arditti, que toca tudo com a fluência natural de quem toma um copo d'água, também toca Brahms com verve e paixão e um senso raro de linha.
Nessas condições, qualquer obra nova empalidece. Não há recheio à altura para o sanduíche.
Seria mesquinho, no entanto, reclamar de música nova dessa qualidade. A obra de Xenakis constitui um acervo cultural da humanidade, e é azar o nosso se esse patrimônio não chega quase nunca por aqui.

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