São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Uma viajante atrapalhada

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Pau-de-arara - Classe turística", primeiro romance de Regina Rheda, 39, é uma divertida crônica das peripécias de uma brasileira balzaquiana em terras européias nos anos 90.
Aos 30 anos, desempregada e sem esperanças de ver sua sorte mudar por aqui, a cineasta (de curtas-metragens) Rita Setemiglia, formada pela USP, parte para a Inglaterra, já com planos de mudar meses depois para a Itália de seus antepassados.
Como milhares de jovens de classe média de sua geração, deixa o Brasil com uma mão na frente e outra atrás, disposta a aceitar qualquer coisa -lavar pratos, ser garçonete, o que for- para viver lá fora.
Os problemas começam já na chegada a Londres, com as cismas do agente da Imigração. Depois, contratada como "au-pair" (empregada doméstica e babá), a cineasta frequenta pubs e wine-bars à procura de companhia, masculina de preferência; esbarra com todo tipo de homens; cai em ciladas e arma outras; vivencia na pele a paranóia dos imigrantes clandestinos.
Na Calábria, onde é acolhida por familiares distantes que jamais conhecera, passa por outro tipo de encrenca, aparentemente mais amena, mas muito mais perigosa na sua essência.
Alternando narrativa em terceira pessoa com trechos de cartas de Rita a amigas de São Paulo, Rheda cria suspense nos dois momentos, Inglaterra e Itália. Inicialmente, além de acompanharmos seus casos amorosos e suas andanças, ficamos curiosos quanto ao desfecho da perigosa e ambígua relação que Rita estabelece com o agente da Imigração que quase impedira sua entrada em terras britânicas.
Mais tarde, na cidadezinha de Gentiluomo Calabrese, seu envolvimento com um parente de hábitos estranhos atiça no leitor, como numa narrativa de suspense tradicional, a vontade de conhecer o quanto antes o destino da protagonista diante da situação curiosamente embaraçosa em que se mete.
Bem-humorada e despretensiosa, a linguagem de Rheda foge de clichês, deixa filosofices de lado e carrega em descrições saborosas, como a cena de uma festa em Londres, na casa de uma psicóloga junguiana, por exemplo, que começa da seguinte maneira:
"A arte de um grande cuisinier se define, entre outras coisas, pela marca pessoal que ele dá às suas iguarias. Desse ponto de vista, o prato principal que Monique prepara para o almoço era uma obra-prima. Rita, assim como os outros comensais, constatou que a comida da grande, redonda, branca e sarapintada anfitriã tinha, mesmo, a cara dela, logo que ela trouxe da cozinha, sob o queixo de geléia, entre os braços de pudim, e à frente do busto de gelatina, a sua pesada travessa de lasanha à romanesca...".
Apesar dos riscos que a personagem assume em terras estranhas, suas aventuras não são do tipo barra-pesada -ficam, antes, no limite disso. E, mesmo nas cenas de maior perigo para Rita -que está longe de ser, diga-se, um poço de ingenuidade-, não há traços de baixo-astral ou recitações lamuriosas.
Obra propositadamente leve, "Pau-de-arara" traça, de quebra, um perfil arguto da classe média londrina e revela os horizontes limitados de uma família dos confins calabreses. Tal como "Arca sem Noé", livro de contos de Rheda premiado com o Jabuti 95, é receita ótima para quem queira relaxar de modo divertido por algumas horas no fim-de-semana.

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