São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Os fantasmas do imperador

JOSÉ MURILO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Marguerite Yourcenar, no que se poderia chamar de nota metodológica a "Memórias de Adriano", diz que sentiu necessidade de adotar técnica que eliminasse intermediários entre ela e o imperador, técnica que deixasse o personagem falar à medida que a autora silenciava. A técnica escolhida foi a autobiografia ficcional que lhe permitiu se transportar para dentro do personagem, ou melhor, transportar o personagem para dentro de si, num ritual de possessão análogo ao dos cultos mediúnicos. Foi também esta a técnica empregada por Jean Soublin para tentar entender o ser humano chamado Pedro 2º, em livro que lembra o romance de Yourcenar em pontos que não se limitam à metodologia.
Nos dois casos, separados por 17 séculos, dois imperadores com vocação especulativa resolvem avaliar suas vidas enquanto aguardam estoicamente a morte. O toque amargo das memórias ficcionais de d. Pedro 2º fica por conta da situação de imperador, deposto, exilado, doente, recentemente enviuvado, abandonado de quase todos, exceto familiares e pequeno grupo de amigos fiéis e admiradores.
Pode-se perguntar se já não há suficientes biografias de Pedro 2º e se já não se conhece satisfatoriamente sua personalidade. Sobre sua vida escreveram, entre outros, Pinto de Campos, Afonso Celso, Taunay, Max Fleiuss, Heitor Lira, Pedro Calmon, Amaral Gurgel, Alberto Rangel, Mary W. Williams, Lídia Besouchet, Herculano Mathias. Além disso, o próprio imperador deixou diversos escritos, diários, os "Conselhos à Regente", vasta correspondência pessoal, poesias, e a fé de ofício, escrita à mesma época em que Soublin o faz redigir as memórias. Acrescente-se ainda a visão comum do imperador como sendo dotado de personalidade transparente, moldada que foi por seus educadores, e a visão de que teria passado a vida a representar o papel para que foi ensaiado.
A curiosidade que ainda desperta a personalidade do imperador talvez se deva à desconfiança de que tudo isto é simples demais para ser verdadeiro. Que tentaram moldá-lo, não há dúvida. O órfão de seis anos foi entregue a tutores (José Bonifácio, depois Itanhaém) que o isolaram em São Cristóvão e o submeteram a uma educação militarizada. As instruções de Itanhaém, redigidas em 1838, estabeleciam: levantar às 7h, almoçar às 8h, acompanhado do médico que, entre outras coisas, devia evitar que comesse muito (receio de que puxasse ao avô?), estudo das 9h às 11h30, jantar às 14h, quando a conversa devia se limitar a assuntos científicos ou de beneficência, estudos, passeio, ceia às 21h30, cama às 22h. A seu redor circulavam figuras medíocres, como o próprio tutor e D. Mariana de Verna, ao lado de outras de valor, como Aureliano Coutinho, Araújo Viana e Félix Taunay. O imperador reconheceu mais tarde a influência desses mestres, sobretudo de Araújo Viana e de Taunay. Algumas das lições que lhe ensinaram, ele as seguiu, ou tentou seguir, à risca, como a de ler todos os jornais, de se informar sobre tudo e sobre todos, de obedecer às leis, de não ter validos e, sobretudo, validas (medo dos educadores de que saísse ao pai?).
Mas permanece a pergunta: é possível moldar dessa maneira uma pessoa, transformá-la em máquina de governar, passando totalmente por cima de seus sentimentos? Afinal, a infância e adolescência de Pedro 2º foram marcadas por acontecimentos traumatizantes. O imperador ficou órfão de mãe quando tinha um ano de idade, foi afastado do pai e da madrasta aos seis, perdeu uma irmão aos oito, ficou órfão de pai aos nove, tornou-se imperador aos quatorze, casou-se sem amor aos dezessete, perdeu logo a seguir dois filhos homens, os únicos que teve ("Para tamanha dor não há conforto", diria em soneto de 1850, a propósito da morte do segundo filho).
O mundo de emoções oculto sob a máscara que lhe colocaram, e que ele adotou, é o que continua a atrair a curiosidade de historiadores e de leigos como Jean Soublin. Como transpor a muralha, como chegar ao ser humano por trás do imperador? Como também dar conta desse fenômeno exótico de um imperador erudito, fascinado pela ciência, europeizado, liberal, legalista, disciplinado, governando por quase meio século um povo que era exatamente o oposto de tudo isso? Sem falar da figura física de um Habsburgo alto, louro, de olhos azuis, numa terra de mestiços. Talvez pela possessão.
Os dotes de médium de Soublin são médios. A voz de Pedro 2º que consegue captar lhe vem quase sempre dos escritos do imperador e dos documentos da época, como, aliás, acontece também com Yourcenar, que inclui vasta bibliografia ao final de seu livro. O leitor surpreende-se às vezes acreditando estar diante de uma autêntica autobiografia. Se conhecer um pouco o período, pode ser despertado da ilusão por algum deslize histórico, dos poucos que comete o autor, como o de falar de uma população majoritariamente republicana na década de 30, de colocar B. Constant como mestre das filhas de Pedro 2º e não dos netos, de chamar "O Guarani" de poema, ou pelo uso eventual de terminologia que mais lembra a política francesa da época do que a brasileira (esquerda, centro, direita, burguesia católica etc.). Mas, de modo geral, Soublin revela surpreendente (para estrangeiro não historiador) conhecimento da época e de Pedro 2º e grande sensibilidade na reconstituição do pensamento e dos sentimentos do imperador. O livro pode ser lido, e com prazer, como verdadeira autobiografia, sobretudo nas partes referentes aos contatos do imperador com pessoas e idéias européias.
No entanto, a ambição do autor parece ir além. Ele parece consciente de que os diários e a correspondência do imperador podem constituir uma armadilha se vistos como guias seguros para revelar sentimentos íntimos. O mais provável é que esses documentos reproduzam em boa parte a auto-imagem que o imperador incorporou e que transmitia, mesmo inconscientemente. No diário de 1862, por exemplo, escrito aos 37 anos, raramente aparecem comentários que não tenham a ver com assuntos de Estado e com declarações de princípios. Uma das poucas pistas fornecidas ao ficcionista está na frase seguinte: "(...) viveria inteiramente tranquilo em minha consciência se meu coração fosse um pouco mais velho do que eu", seguida, depois de ponto e vírgula, da reveladora autojustificação: "Contudo respeito e estimo sinceramente minha mulher, cujas qualidades constitutivas do caráter individual são excelentes". Por esta pequena fresta entreaberta, pode-se vislumbrar vasto campo para a exploração dos sentimentos do imperador em relação à imperatriz e de suas sempre discretas aventuras extraconjugais. São essas escassas pistas que permitem ao ficcionista exercer seus dotes criativos e fugir do ventriloquismo dos documentos.
Soublin revela criatividade no caso particular das relações do imperador com as mulheres, sobretudo com a condessa de Barral. Vai além do que têm dito os biógrafos, em geral excessivamente contidos, sem cair na caricatura de versões popularescas. As relações com a condessa adquirem densidade humana, em que amor e amizade se misturam a dolorosas frustrações.
Outro ponto alto do texto é o aproveitamento do episódio histórico de conversa do imperador com tenente paraguaio feito prisioneiro em Uruguaiana. Há pequena torção dos fatos quando Soublin faz os dois conversarem em guarani, posto que apenas discutiram as semelhanças entre o guarani da época da descoberta e o guarani falado no Paraguai. Torção perfeitamente aceitável por colocar em relevo a paixão do imperador pela linguística (só mesmo ele para discutir linguística com um prisioneiro de guerra no campo de batalha). Mas o que sobressai do episódio, na versão de Soublin, é a conclusão que d. Pedro tira do diálogo. Diante da recusa (real) do jovem tenente em aceitar anistia e salvo-conduto, sob o argumento de que, ao chegar ao Paraguai, seria fuzilado por ordem de López por se ter rendido e, mais ainda, diante da convicção do oficial de que a execução seria justa, Soublin faz o imperador concluir que, diante de tal fanatismo, era indispensável levar a guerra até a destruição pessoal de López. Enquanto vivesse o chefe paraguaio, a luta continuaria. A imaginação do romancista fornece razão plausível para o enigma histórico da insistência de Pedro 2º, radicalmente avesso à violência, em continuar a guerra depois da derrota militar do inimigo. Tanto quanto à violência, o imperador tinha ojeriza a fanatismos.
O melhor do romance é a cena final em que os fantasmas de sete medos invadem, um após outro, o quarto de hotel, em Vichy, como outros tantos cavaleiros do apocalipse. Os fantasmas atormentam o imperador trazendo-lhe à consciência remorsos e angústias do passado. Entra um rabino em forma de gárgula acusando-o de plágio em tradução penosamente feita dos "Cantos de Comtat", escritos em provençal. Toda a vasta erudição de que se orgulhava teria sido uma fraude? Toda a fama de conhecedor de línguas, inclusive do hebraico, que usava para discutir com rabinos nas sinagogas da Europa, estaria destruída? Vem o fantasma da guerra que o transporta para as margens de um rio cujas águas se tornam rubras do sangue paraguaio. O imperador-filósofo com as mãos tintas de sangue? Surge a seguir o fantasma do pai que dança nu entre bailarinas. Teria valido a pena todo o escrúpulo e discrição no trato com as mulheres para evitar o constrangimento causado pelo comportamento escandaloso do pai? Um tanto estranhamente, pela inversão cronológica, aparece o fantasma do Conselheiro seguido de multidão de miseráveis em que o imperador crê reconhecer seu próprio povo. Por fim, um fantasma ainda mais perturbador, um sábio que põe em dúvida suas crenças e convicções mais profundas: o amor às leis e às regras, em vez de facilitar, não teria sido obstáculo à realização da felicidade do povo? Um pouco de caos e desordem não teria sido mais útil para produzir as mudanças necessárias?
Desaparecem os fantasmas, o imperador tranquiliza-se e passa a aguardar a morte com serenidade. Nestes parágrafos finais, Soublin liberta-se dos documentos e busca, pela imaginação, contato imediato com os sentimentos do velho imperador. Seriam esses, no entanto, os verdadeiros sentimentos de Pedro 2º, escondidos por trás dos escudos protetores construídos na infância? A pergunta talvez não importe. Quais foram os sentimentos verdadeiros do imperador ninguém poderá saber. Nem os documentos os revelarão, nem possessão alguma. Talvez o importante seja perguntar pela capacidade do ficcionista em imaginar complexidades humanas insuspeitadas.

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