São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A síndrome FHC da intelectualidade

TARSO GENRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma boa parte dos intelectuais de prestígio acadêmico e de respeitável currículo político, como defensores da social-democracia ou do socialismo, migraram para posições políticas "realistas" e são defensores -hoje- em maior ou menor grau do projeto representado pelo presidente Fernando Henrique. Ele mesmo -o presidente- foi uma referência da esquerda brasileira. Não só pela sua tradição na universidade, mas igualmente pela posição que assumiu na resistência ao regime militar. Weffort, Giannotti e Arnaldo Jabor -entre outros- hoje são duros críticos da esquerda, particularmente daquela que continua trabalhando com a utopia socialista.
Entendo que a dimensão política mais importante da entrevista do presidente, publicada no caderno Mais! de 13/11, está sintetizada no reconhecimento de que "provavelmente na dinâmica atual não há força para incorporar todo o mundo" na sociedade formal, ou seja, integrar na esfera dos direitos, do consumo, da educação e das liberdades reais, o conjunto da cidadania.
A honestidade intelectual do presidente obriga-lhe a "abrir" as consequências do programa que ele, hoje, representa como governante e que sustenta ser o único possível: um programa que tem a exclusão como necessidade invencível. Esta posição, aliás, nada tem de incompatível com as suas pesquisas e teorizações anteriores -busca fundamentada do conhecimento do real- que podem ser racionalmente separadas da ação política incidente sobre a realidade social. A natureza desta ação "decidida", como diria Drummond, traduz um "sentimento de mundo", no caso, uma conduta baseada numa convicção "objetivista", assentada na certeza de que a vontade do sujeito é impotente para reverter as determinações do real.
O presidente FHC é uma síntese de uma translação de boa parte da esquerda para posições "realistas". Uma leitura cuidadosa dos seus discursos e das suas principais entrevistas gravadas permite perceber uma preocupação legitimante das suas posições atuais, sustentada em quatro argumentos: a) a esquerda é herdeira do corporativismo, e o corporativismo é conservador; b) a globalização determina um certo tipo de inserção internacional, que não deixa margem a escolhas; c) a esquerda não tem propostas, só críticas; d) o Estado atual deve ser reformado e enxugado.
Pode-se arrolar dados empíricos que confirmem as teses de FHC, como apontar outros tantos, capazes de sustentar racionalmente o contrário: que a direita e as classes privilegiadas no Brasil -que sustentam seu governo- são mais corporativas; que a globalização arma vários blocos de poder internacional, cujos interesses contraditórios permitem várias alternativas; que a direita não tem nenhuma proposta consistente, pois a situação social piora a cada dia no mundo; e que o Estado atual deve ser reformado, mas para ampliar o seu caráter público.
Para contribuir com um novo projeto de esquerda, nos interessa verificar quais os limites da esquerda atual, impulsionadores do fenômeno que separa Antonio Candido, José Luis Fiori e Chico de Oliveira de outras personalidades que poderiam estar pensando e agindo conosco, para revitalizar o espírito utópico.
É necessário reconhecer primeiramente que "esfumou-se" a base histórico-concreta da nossa unidade mínima, que tanto permitia tratar a revolução como o "apressamento" de uma história com final previsível, assim como permitia verificar, no sujeito proletário, um construtor messiânico da nova ordem. Como argumenta G.A. Cohen, a esquerda não necessitou jamais fundamentar normativamente a igualdade para sustentá-la, pois o destino do socialismo estava inscrito, ou pelo menos fortemente insinuado, pelo próprio desdobramento da sociedade capitalista:
"Os marxistas clássicos acreditavam que a igualdade econômica era tanto historicamente inevitável quanto moralmente correta. Eles acreditavam de forma totalmente consciente na primeira crença e mais ou menos conscientemente na segunda, mostrando-se também mais ou menos evasivos -o próprio Marx era evasivo sobre isso- quando perguntados se acreditavam nela (na segunda crença). Foi em parte porque acreditavam que a igualdade econômica era historicamente inevitável que os marxistas clássicos não despenderam muito tempo refletindo sobre sua correção moral, sobre precisamente que princípios normativos fundamentais estabeleciam sua superioridade moral. A igualdade comunista estava a caminho, ela era bem-vinda, e seria uma perda de tempo teorizar sobre por que ela era bem-vinda, em vez de teorizar sobre como fazê-la chegar o mais rapidamente e da forma menos indolor que fosse possível -pois a rapidez e o custo para alcançar a igualdade comunista, diversamente dela própria, não eram inevitáveis" (1).
Um dos pressupostos fundamentais, portanto, para compreender esta situação é que não mais estamos numa situação de "privilégio" histórico já determinado, como imaginávamos, baseados na certeza de que a crise capitalista era uma espécie de "motor" do socialismo. Antes dizíamos: "Nós podemos falar de um mundo novo porque levamos um mundo novo em nossos corações (...)". Hoje indagamos: "Que sucede com um grande movimento histórico (...) quando parece esfumar-se a coluna vertebral de sua estrutura espiritual?" (2). Em vez de nos defrontarmos com a possibilidade do socialismo estamos nos defrontando com a afirmação da barbárie.
A diluição da cultura política da esquerda e, de outra parte, a afirmação dos valores democráticos tradicionais (assegurados pelos países capitalistas avançados) terminaram com a credibilidade da pseudo-ética que nos atribuía exclusividade para defender a democracia real (afirmadora da igualdade), sem a necessidade de explicitar princípios normativos dotados de flagrante superioridade moral.
Assim, hoje, é necessário buscar não só um acordo sobre os fundamentos morais da igualdade, capazes de se tornarem universais -a menos que nos apeguemos somente à religião, ou à equidade tomista-, mas também precisamos fundamentar (a partir de valores claramente explicitados) que o socialismo "representa tanto uma extensão da democracia capitalista, como a sua transcendência" (3). Isso significa admitir que a igualdade só pode ser consequência de uma decisão emancipatória do sujeito e que, para se afirmar como valor, ela -a igualdade- só pode legitimar-se pela democracia, que exige cena pública e liberdade (as quais são incompatíveis com qualquer regime de força, como nas antigas "democracias populares").
Além do discurso classista, que defende os interesses dos trabalhadores, dos desempregados, e do novo discurso em defesa do direito à diferença cultural, dos movimentos de gênero e ecológicos, é fundamental buscar outros potenciais progressistas que emergem de determinados setores sociais. Refiro-me àqueles dominados pela "solidariedade individualista" (4), a saber, cujo chamamento à militância combina a ação dos indivíduos solitários (que se constituem por meio das novas formas de produção isolada) com o potencial subjetivo que eles podem acrescer, coletivamente, na defesa de determinados direitos.
Precisamos saber, também, atrair o "egoísmo racional" daqueles que reconhecem "a irracionalidade dos custos sociais e dos efeitos negativos, não apenas para os pobres, mas também para os próprios ricos, da miséria, falta de esperança, da violência, da criminalidade, do medo. O individualismo solidário e o egoísmo racional poderão, em alguns países, acrescentar novas forças ao projeto de uma esquerda do futuro" (5).
Na verdade é totalmente impossível manter a força da utopia socialista com os parâmetros da segunda revolução industrial. Da sua cultura, da sua ética, do seu modo de vida, advém a proposta de um modelo de produção destrutivo da natureza. Modelo que se choca inclusive com a finitude, já constatável, dos recursos do planeta e que se opõe frontalmente à segurança ecológica e a um desenvolvimento sustentável (6), elementos irrenunciáveis de um projeto socialista moderno.
O desenvolvimento concreto da economia e da cultura na "sociedade informática" abre duas possibilidades extremas para a relação Estado x sociedade: ou um totalitarismo "informático", manipulatório e subjugador da maioria da sociedade pelo "Estado ampliado" (aparelho estatal + monopólios modernos); ou abre a possibilidade da democratização radical do Estado, pelo controle direto e indireto da cidadania.
A recomposição de um projeto democrático de caráter socializante passa, assim, também pela ousadia de conceber a existência de um espaço público, de caráter não-estatal. Espaço capaz de ser estruturado, entre o Estado e a sociedade, para potencializar formas de participação capazes de combinar a democracia direta com a estabilidade da representação política. A potência desta alteração deve ser tão forte que implique novas relações de poder, cujas origens só podem emergir da indignação não-conformista, para não ser conservadora.
O movimento de passagem do intelectual FHC à condição de presidente, articulado com o que há de mais arcaico e fisiológico na sociedade brasileira, não pode ser mensurado com as categorias de uma velha ética, em cujo centro estava o adjetivo "traidor" para qualificar os "desvios". A normatividade moral, oriunda desta ética, fundava-se na constatação de que havia um mundo novo em gestação e que a renúncia (de um sujeito individual) aos seus valores era um obstáculo à emergência da única sociedade capaz de redimir o gênero humano.
À medida que a história provou nada estar assegurado no futuro, a não ser aquilo que os próprio homens farão dele, temos é que constituir valores universais capazes de afirmar um novo projeto, antes, presumidamente, engendrado pela fatalidade do desenvolvimento capitalista combinado com o messianismo do sujeito proletário. Só assim poderemos recriar a cultura política do socialismo, ampliar a nossa audiência na sociedade, combatendo o aparente conforto da cultura da desigualdade e a aceitação objetivista da "naturalização" das relações sociais, que só poderão levar a humanidade à pobreza, à barbárie e à guerra.

Notas: 1. Cohen, G. A. "A Igualdade como Norma e o (Quase) Obsoleto Marxismo", em "Lua Nova". Cedec, SP, nº 33, pág. 125. 2. Arocena, Rodrigo. "La Izquierda ante la Decepcion", in "Nueva Sociedad", Caracas, nº 141, enero/fevrero, pág. 142. 3. Miliband, Ralph. "A Plausibilidade do Socialismo", em "O Mundo Depois da Queda", Emir Sader (org.), Paz e Terra, SP, pág. 136. 4. Therborn, Gõran, "Pós-neoliberalismo - a História Não Terminou", em "Pós-neoliberalismo. As Políticas Sociais e o Estado Democrático", Paz e Terra, SP, pág. 191. 5. Idem, pág. 184. 6. Idem, pág. 191.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Estados chegam à era do Império
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.