São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Estados chegam à era do Império

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ferdinand Braudel dizia que "o capitalismo triunfa somente quando identificado com o Estado, quando se torna o Estado". Estava certo. Perguntemo-nos, então: qual é a forma de Estado que segue a mundialização capitalista da produção e da circulação de mercadorias? Respondemos: esta nova forma do Estado é o Império.
A constituição do Império está se desenvolvendo sob os nossos olhos. Uma vez já exaurido o obstáculo soviético ao mercado mundial e consumada a saída do colonialismo, de fato está em curso em uníssono com a irresistível mundialização das trocas a construção de uma estrutura de regulação destas trocas; uma estrutura centralizada e dotada de poderes soberanos. Como na Antiguidade greco-romana, a idéia do Império, tal e qual nos aparece hoje, antes que representar uma tensão de conquista, é uma tentativa de suspensão da história, de estabilização e de ordenamento do estado (mundial) das coisas presentes.
E, como na Antiguidade, o que se põe em ato com este fim, longe de se reduzir a simples dispositivo ideológico, é uma poderosa máquina política -a máquina Império, justamente. Isto é, um novo paradigma de soberania, de sua legitimação e de seu exercício, em escala mundial.
Certamente há quem afirme que o capitalismo, desde o seu nascimento, foi ordem mundial; e que, portanto, a insistência hoje posta nos processos de mundialização e em suas novas feições politicas é o produto de um defeito anterior de definição: uma ilusão, portanto. Mas a correta atenção levada às dimensões "ab origine" universais do desenvolvimento capitalista não pode esconder o enorme esforço que hoje se realiza para fazer com que o centro do poder econômico coincida com o centro do poder político.
A diferença é produzida aqui pela queda das diferenças, ou melhor, pelo fato de que a mundialização já não é somente um processo de fato, mas se torna fonte de qualificação jurídica e destino de uma figura unitária de poder político -o Império, precisamente. Há também quem afirme que os Estados capitalistas do Primeiro Mundo exerceram -em associação entre si, ou então isoladamente, de qualquer modo sempre na modernidade- uma ação imperialista sobre as outras nações e partes do globo.
A tendência atual do Império não representaria então uma novidade, mas, por assim dizer, um aperfeiçoamento do imperialismo. Sem subestimar eventuais linhas de continuidade, deve-se no entanto salientar que, na situação atual, no pós-moderno, ao conflito entre diversos imperialismos substitui-se a idéia de um poder único que os sobredetermina a todos, os estrutura unitariamente e os contêm sob a mesma idéia de direito. Esta idéia de direito é uma idéia pós-colonial e pós-imperialista.
Chegamos ao cerne: uma nova idéia de direito. Ou seja, uma nova idéia de inscrição da autoridade e um novo desenho de produção de normas e de instrumentos de coação legal para garantir os contratos e para resolver os conflitos -uma nova prática da soberania, portanto, em escala mundial. Assim sendo, o indicador da constituição do Império é ligado, em primeiro lugar, pelo direito.
É o direito que expressa a lógica da grande transformação em ato -especialmente o direito internacional, que, em suas atuais transformações, incide no direito dos Estados-nações, enfraquecendo ou anulando suas prerrogativas, e que constrói, em escala planetária, novas centralidades e hierarquias de comando. Mas também o direito do mercado e das empresas capitalistas, na complexidade das relações que este mantém, hegemonicamente, com a produção e a circulação das mercadorias, a reprodução e as migrações das populações, o desenvolvimento econômico e a determinação dos valores, dos consumos, dos usos e dos modos de vida -para não falar da informação e da linguagem. É a este movimento, e à tendência que podemos ler em seu interior, que chamamos de Império.
Este é o quadro, portanto.
Nós, cidadãos de velhas e novas democracias, de Estados-nações mais ou menos consolidados, podemos desejar que o processo imperial se aperfeiçoe, ou então temos de considerar que este representa uma nova, fortíssima, forma de opressão e o irresistível fechamento de todo o processo de transformação democrática das formas políticas existentes?
Eu não sei dar uma resposta definitiva a estas questões. Parece-me lícito pensar, no entanto, que o processo imperial está tão adiantado que fazer-lhe oposição pode parecer vão. Ademais, como velho comunista, continuo pensando que a libertação da humanidade (da exploração) só pode se dar em território mundial, e que a internacional dos trabalhadores desejou fortemente, por meio de suas lutas, uma irmanação mundial dos oprimidos.
Não consigo, por outro lado, esquecer a bestial crueldade do Estado-nação e as mil "guerras patrióticas" em que os povos se massacraram. E não consigo conceber a possibilidade de sobrevivência do Estado-nação, na crise, a não ser como reprodução de mecanismos de exclusão, repressão e integralismo (seja quais forem as suas formas, religiosas ou ideológicas). Além disso, como cidadão cosmopolita, parece-me que somente na mobilidade e na mestiçagem, na desterritorialização e na hibridação, o homem livre possa hoje produzir, enriquecer espiritualmente -enfim, viver.
O problema então não é tanto o de resistir ao Império quanto o de decidir, subjetivamente e em termos coletivos, que Império queremos.

Tradução de Roberta Barni.

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