São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O caçula de Bloomsbury

ANTONIO BIVAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apaixonado por Virginia Woolf desde que li "As Ondas", algum dia, algum caminho teria que me levar ao seu sobrinho e biógrafo Quentin Bell e à sua mulher, Anne Olivier Bell -editora dos cinco volumes dos diários de Virginia.
Em 1993, encontrei-os em Charleston -uma das casas de campo do grupo de Bloomsbury desde 1916, em Sussex (Inglaterra). Em 1994, levado por Jenny Thompson -amiga de Charleston-, visitei Quentin numa tarde de verão. Ficamos conversando na cozinha, em torno da mesa e da fruteira com laranjas esquecidas. Sobre a roupa, Quentin vestia um surrado avental de pintor, todo manchado de tintas. Estava com 84 anos e pleno de vivacidade. Comentou que o Brasil estava na onda por causa do futebol na Copa. Entusiasmado, contou-me também que estava terminando um livro, "Elders and Betters" ("Mais Velhos e Melhores").
Em agosto de 1995, saiu o livro na Inglaterra e, em março do ano seguinte, a edição americana, mas com outro título. Concluí que a mudança de "Elders and Betters" para "Bloomsbury Recalled" ("Bloomsbury Recordado") foi para tornar o apelo mais claro e imediato para o leitor americano.
O livro é delicioso. São "portraits" dos "bloomberries" por uma criança que nasceu e cresceu em Bloomsbury, filho de um animador cultural (Clive Bell) e de uma pintora (Vanessa Bell), sobrinho de Virginia e Leonard Woolf, e educado por John Maynard Keynes, Duncan Grant e outros. Com modos e estilo encantadores, Quentin jamais deixa de ser franco ao retratar qualidades e fraquezas do grupo em seu livro, sobre o qual ele fala na entrevista a seguir, feita por carta. A uma das perguntas, sua mulher, Olivier, acrescentou sua própria resposta.
Quentin Bell tem três obras traduzidas no Brasil: sua biografia de Virginia Woolf (Editora Guanabara); "Bloomsbury" (Ediouro) e "Os Papéis de Brandon" (Companhia das Letras). De Anne Olivier Bell, a Companhia das Letras publicou uma edição reduzida dos diários de Virginia Woolf.
*
Folha - Quando o sr. começou a escrever "Elders and Betters"? Qual foi a disciplina?
Bell - Não sei exatamente. Mais ou menos há cinco anos. Comecei como autobiografia. Nenhuma disciplina.
Folha - E a mudança do título nos Estados Unidos, "Bloomsbury Recalled"? Foi o sr. que escolheu?
Bell - Foi conselho do meu editor americano, em quem confio.
Folha - Há episódios de sua vida, deliciosamente narrados no livro, relacionados não somente à sua convivência com "os mais velhos e melhores", mas com outros também: os criados, as babás, os tutores, os professores (na França, monsieur Pinault, por exemplo) etc. No livro, o sr. dá a impressão de ter aprendido muito com eles nos anos de crescimento. Os criados tiveram algo a ver com a sua formação política?
Bell - Nosso "tesouro", Grace Higgens, era um caráter charmoso, e pude conhecê-la bem quando menino (ela era seis anos mais velha que eu), mas este e outros encontros com criados não foram politicamente educativos, exceto no caso de Blanche, que era uma rebelde irlandesa. Com Pinault foi diferente: um professor que muito me ensinou sobre a França e o socialismo. Mas meus educadores mais importantes foram meu irmão (Julian Bell, morto em 1937 na Guerra Civil Espanhola) e meu tio Leonard Woolf. Também aprendi muito com trabalhadores e homens desempregados em Stoke on Trent (Inglaterra).
Folha - Qual é a sua opinião sobre os filmes adaptados dos livros e das vidas dos membros do grupo de Bloomsbury, como "Orlando", "Tom e Viv", "Carrington"?
Bell - Não posso sair muito agora, minhas pernas não ajudam, de modo que não vi "Carrington", "Tom e Viv" e "Orlando". Mas vi pela televisão trechos de filmes que tinham a ver com pessoas que conheci -Vita Sackville-West, Harold Nicholson (irreconhecível)- e vi "A Room of One's Own" (Um Teto que Seja Seu, baseado em livro de Virginia Woolf), com Eileen Atkins -este foi bom. Vi também "To the Lighthouse" (baseado em livro de Virginia) numa projeção privada em Charleston, há muito tempo. Se não me engano era da BBC. Não achei grande coisa na época, mas outros gostaram.
Folha - O sr. assiste TV? Lê jornais?
Bell - Assisto noticiários e de vez em quando algum outro programa -documentários, adaptações de Trollope, Dickens, George Eliot, mas não de Jane Austen, que prefiro ler. Lemos "The Guardian", "The Independent", "The Observer".
Folha - Em "The Voyage Out", o primeiro romance de Virginia Woolf, o cenário, quando o navio chega, é a América do Sul. Para o leitor brasileiro, o lugar onde a ação finalmente acontece fica geograficamente no norte do Brasil, perto do Amazonas. Na sua biografia de Virginia, lembro-me que o sr. conta que, na infância dela com a família na Cornuália, ela ficava vendo os navios passarem e os imaginava indo para o Brasil. Na edição comentada de "The Voyage Out", da Penguin, a comentarista, Jane Wheare, diz não restar dúvida que o lugar é o Brasil.
Bell - As noções de Virginia sobre a América do Sul eram grotescas. Ela tinha uma amiga, Victoria Ocampo, de Buenos Aires, que tinha que explicar a ela que a Argentina não era uma floresta com jacarés e borboletas tão grandes quanto vultos e com nativos perseguidos por pumas. A colônia de língua inglesa de "The Voyage Out" só existia na imaginação dela.
Folha - O sr. tem alguma idéia por que o grupo de Bloomsbury nunca visitou o Brasil? Mesmo os Estados Unidos parecem ter sido "evitados".
Bell - Em Bloomsbury alguns poucos foram à Rússia, Finlândia, Alemanha e Áustria, mas a maioria ficava com a França, Itália e Espanha; eles gostavam de ir para onde sabiam a língua. Clive Bell e Maynard Keynes visitavam os Estados Unidos com certa frequência. Para o resto já era suficiente encontrar alguns americanos em Londres e muitos em Paris.
Folha - Qual a sua opinião sobre a Virginia Woolf Society, dos Estados Unidos? O sr. não acha que há, entre seus membros, uma insistência no lado lésbico, inexistente em Virginia?
Bell - Existem alguns acadêmicos altamente inteligentes nos Estados Unidos, entre eles alguns que escrevem apaixonadamente sobre ela, e outros que não sabem praticamente nada. A ala lésbica e militante feminista é eloquente, apaixonada e tola.
Folha - Sobre "Bloomsbury Recalled", na sobrecapa da edição americana, Nigel Nicolson diz: "Ele (Quentin Bell) confessa que achou difícil escrever sobre gente que conheceu tão bem, mas ninguém os descreveu melhor que ele, e seu livro nunca sofre de discrição". Mas, se o sr. fosse ainda menos discreto, quem mais traria para fora do armário?
Bell - Eu mesmo.
Folha - Dos eminentes bloomsburianos, Maynard Keynes é mostrado como o mais influente nos seus anos de formação. No fim do livro, no "Apêndice 2", o sr. comenta a mudança comportamental que os anos provocaram em Lord Keynes, chegando a julgar as novas crenças dele como deploráveis se comparadas às antigas -antes, o imoralista, agora, o fascista, o reacionário. O sr. conclui: "Politicamente, a antiga crença de Maynard me faz sentir que suas últimas são deploráveis. Mas o fato de o jovem Maynard sobreviver nos permite perdoar o velho e continuar a amá-lo". Encarando o amoralismo que tomou de assalto o mundo neste fim de milênio, que acha o sr. que Keynes pensaria das consequências desse amoralismo? E do futuro do capitalismo?
Bell - Imagino que o velho Maynard deploraria tudo. Mas o jovem Maynard bem poderia gostar do prospecto.
Folha - E o sr., o que você pensa da política hoje, na Inglaterra?
Bell - Os conservadores me parecem venais, estúpidos e ineficientes. O Partido Liberal faria melhor se se juntasse ou formasse uma coligação com o Trabalhista.
Folha - Para o sr., o que é mais agradável: pintar, esculpir, fazer cerâmica, escrever críticas de arte, atuar como professor ou escrever? Qual é mais difícil?
Bell - Escrever, esculpir, fazer cerâmica, pintar, ensinar, criticar, nesta ordem. Tentei ditar a um gravador enquanto fazia cerâmica, mas não deu muito certo.
Folha - No início do livro, o sr. escreveu: "Não faz muito tempo, quando pensei que seria agradável escrever minha própria vida, depois de três tentativas mudei de idéia". Bem, ao retratar seus "elders and betters", sua presença no livro é permanente e deixa no leitor o desejo de saber mais a seu respeito. Sua biografia será escrita algum dia. Dos biógrafos de Bloomsbury, quem o sr. escolheria para abraçar a tarefa?
Bell - Já pedi a Andrew McNeillie para escrevê-la.
Folha - Como o sr. e sua mulher, Olivier, se encontraram -e por que ela é tão determinada em ser "low profile"?
Bell - Vi a Olivier primeiro durante uma palestra de Walter Sickert na Euston Road School, em 1938.
Olivier - Não, não o vi. Eu o vi pela primeira vez durante a guerra, em um debate na casa de Claude Rogers.
Bell - (continuando) Eu a vi de novo em Veneza, em 1946, e pedi dinheiro emprestado a ela porque tinha sido roubado. Conhecemo-nos melhor entre 1950 e 52, quando nos casamos. Já tivemos nossas brigas, não muitas, ninguém saiu ferido. Olivier é uma pessoa maravilhosa, e seu "low profile" é parte da maravilha.

Onde encomendar:
"Bloomsbury Recalled" ("Bloomsbury Recordado"), de Quentin Bell, foi editado pela Columbia University Press (234 págs., US$ 24.95). Pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396)

Texto Anterior: A palavra essencial
Próximo Texto: Forman leva filme a Praga
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.