São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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A palavra essencial

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "barrismo" que talvez ameaçasse a poesia de Manoel de Barros já não ameaça no 13º livro do poeta -este nobre "Livro sobre Nada". O risco do barrismo, alusão tanto ao seu sobrenome como à proclamada vocação da sua poesia de ser um "apogeu do chão", de fato não é pequeno: talvez a insistência num certo élan adquirido, alguma mitologização, até involuntária, das referências, um ou outro neologismo de consistência duvidosa. E principalmente: o risco que haveria em deixar que esta poesia, que é uma estação incomum do sujeito poético, virasse uma identidade linguística, regional-pantaneira e cultural acabada.
Nada parecido neste "Livro sobre Nada" (sugestão de Flaubert, que Barros assinala no seu prefácio, mas para dela se diferenciar: "Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. Um alarme para o silêncio..."). Neste livro não há tanto a feição às vezes um pouco típica demais de composição das imagens de Manoel de Barros, espécie de associação surrealista sem panca e sem pose de objetos e qualidades ("parafuso de veludo", "alicate cremoso", "sabiá com trevas" etc), uma das marcas de vários dos livros anteriores do poeta, e que provocou tanto impacto e admiração no final da década de 80, quando sua obra saltou da rede devota e meio clandestina de não muitos leitores para uma circulação mais ampla e nacional.
Este livro é talvez menos espetacular neste sentido. Um livro quase recatado, mais essencial. Nele há uma índole e um jeito de composição mais amparado no que o próprio Manoel de Barros chamou de "lajedo interior do poema" do que na fulgurância das imagens, há os delineamentos ocultos da sua poética e do seu mundo ("Tem mais presença em mim o que me falta"; "É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez"). E há as fontes, a memória e um pouco a moral do seu universo, dispostas em aforismas (como no belíssimo princípio, à la Auden, "Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou"). Livro sobre nada, é também um livro sobre as virtudes.
O melhor porém é que mais ainda do que antes, Manoel de Barros aloja no seu livro várias máscaras, alguns alter ego e personagens: seu pai, sua irmã Bugrinha, o avô insondavelmente teatral, que simulou um dia "cortar o phalo com o lado grosso da faca", e povoa o seu mundo com eles.
Assim, na última seção do livro, de título especialíssimo ("Os Outros: o Melhor de Mim Sou Eles"), o poeta como que se dissolve em alguns desses alter egos: um pintor boliviano, Rômulo Quiroga, em cuja pintura em sacos de aniagem ele viu "latejar a cor psíquica e as formas incorporantes de Picasso", e lhe ensinou que é preciso eliminar da natureza "as naturalidades"; Mário, um tipo do Pantanal que lia o seu futuro nas entranhas dos animais; o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, cuja obra, "ardente de restos", tem semelhança assombrosa com o melhor da poesia do próprio Barros, que estampou num livro: "Aceita-se entulho para o poema".
Estranho, este livro: pacificado, tranquilo no início, quase um romance familiar em "idioleto mamoelês", ele termina com uma dicção quase feroz, e lança vasos comunicantes para vários lados. Melhor assim: o "barrismo" o ameaçava, o "barrismo" o salvou. Barros continua "aberto aos desentendimentos como um rosto".

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