São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Dois Amados e um Gregório

OTÁVIO DIAS
ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR

"Quem sabe tudo de Gregório é o James", avisa a escritora Zélia Gattai, quando o repórter da Folha chega à casa de Jorge Amado, em Salvador, para conversar com o escritor sobre Gregório de Matos.
Trezentos anos de história não foram suficientes para impedir que alguns temas do Boca do Inferno pudessem ecoar na obra do autor de "O País do Carnaval": a mistura de raças e culturas, a sátira social, a carnavalização dos costumes e o erotismo.
Mas, apesar de Jorge, 84, ser o herdeiro natural da literatura baiana inaugurada por Gregório, é outro Amado o verdadeiro conhecedor da obra do poeta do século 17: é James -como alertou Zélia Gattai-, o irmão mais novo de Jorge.
Em 1969, James Amado, 74, sociólogo e também escritor, reuniu e editou pela primeira vez as poesias completas do autor. Por sugestão da Folha, os dois irmãos se encontraram no dia 12 na casa de Jorge para falar de Gregório.
"Não sei se existe uma continuidade que vem de Gregório até meu trabalho; talvez sim, mas são os outros que podem dizer isso, não eu", diz Jorge, que, adoentado, afasta-se pausadamente da sala -é sua maneira de passar a palavra para James.
A Gregório, James dedicou um ano inteiro de trabalho. Estudou minuciosamente 18 códices -manuscritos- guardados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Segundo o editor, quase três séculos se passaram sem que Gregório tivesse sua obra reunida porque existiria incompatibilidade entre o poeta e o "establishment".
"Há dois tipos de intelectual. O primeiro acaba absorvido pelo 'establishment'. O outro é a crítica constante do poder", analisa James. "Entre Matos e o poder, não há acordo. Gregório foi sabotado durante 300 anos porque a cúpula da cultura não o admitia. E ele também não a admitia. Ele não aceitava a cultura de elite, reacionária e contra o povo."
Membro do Partido Comunista até 1956, James mergulhou no estudo de Gregório de Matos depois que perdeu um emprego público com a tomada do poder pelos militares em 1964.
"Eu queria ter uma presençazinha na luta contra a ditadura", diz. "Então resgatei Gregório de Matos." Escolheu a arma certa.
Quando a primeira edição das obras completas chegou à Bahia, mil exemplares foram queimados a mando do comandante militar da região (leia texto abaixo).
Para James, foi Gregório quem inaugurou a poesia brasileira, por ser ele o primeiro poeta com "sentimento brasileiro". "Em nome dos brasileiros, ele esculhambava Portugal", conta. Matos também estaria na raiz da formação da cultura baiana. "Em sua época, o que existia aqui eram portugueses de uma burrice chapada, trazidos à força para a colônia. Os jesuítas eram os únicos representantes de uma cultura mais erudita. Além disso, havia os índios e os negros escravos. Gregório está no começo da mistura dessas culturas."
Matos também foi pioneiro em sua linguagem: "Ao mesmo tempo em que era capaz de versejar na língua clássica portuguesa, na melhor tradição do soneto barroco europeu, a maior parte da poesia de Gregório é brasileira, baiana. Ele é o primeiro a incorporar palavras africanas e indígenas".
Matos não publicou nenhum poema em vida e não deixou um único verso escrito com sua letra. Por isso, o editor de suas obras o define como um "fenômeno poético". "O Gregório não existe", afirma Amado. "Ele só existe porque seus contemporâneos copiaram de memória seus versos declamados aqui e acolá."
Neste aspecto, o poeta baiano poderia ser comparado ao dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). Como no caso de Matos, não se sabe se toda a obra atribuída a Shakespeare é mesmo de sua autoria. "Como não deixou nada de próprio punho, toda a poesia de Gregório é apógrafa. A tal ponto que não se encontra nenhum poema que seja idêntico nos diferentes códices existentes", diz James. Além disso, segundo James, muita coisa pode ter sido atribuída a ele aleatoriamente.
Isso, no entanto, não preocupou o editor. "Incluí nas obras completas todos os poemas atribuídos a Gregório, inclusive um famoso soneto chamado 'A Morte do Padre Vieira', que não pode ter sido escrito por ele, pois Vieira morreu um ano depois de Matos", conta.
James destaca outro aspecto da poesia de Gregório: seu caráter popular e cômico. "Na Bahia, Gregório fez uma viola de uma cabaça e vivia, de engenho em engenho do Recôncavo, como um menestrel, um cancioneiro português do século 13", diz. "A vida popular foi o estrume, o cadinho de sua poesia, que era aberta, divertida."
"O regime baiano era rígido, a forca e o pelourinho estavam na praça pública. Então, o povo criou sua maneira de combater a rigidez", explica. "A cultura baiana resulta da criação de um espaço de liberdade popular. A atualidade de Gregório vem de sua posição crítica. A arte é a crítica da sociedade".
Neste momento, o irmão mais velho surge do corredor, de cabelos despenteados e, como se não tivesse abandonado a sala, assevera: "Gregório é fundamental para a poesia baiana e brasileira".
"Ele influi em geral", diz Jorge. "Eu, como todos os autores desta terra, estou sob sua influência. Ele é o poeta baiano por excelência. Eu trato dos mesmos temas, mas não por excelência."

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