São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Ramilhete de víboras

ANA MIRANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paráfrases de versos do poeta que, caminhando, vê pelas ruas e pelas janelas a gente da cidade e lhes conhece os pecados, que são também seus.
Ali o bispo em seu palácio, os conventos escuros por detrás dos muros. Aquele padre anda metido em danças de Satanás e nas igrejas ninguém ouve os sermões, querem cantorias, milagres, carnavais. Aqui vem o vigário, rezando missa com canto de cachimbeiro e com folia de dinheiro. Aquele padre sodoma, numa luxúria indecente, se sustenta em adolescente. Ali o reverendo anta, metendo os pés numa santa e seu bispo metendo as mãos no dinheiro do povo do país inteiro. Entendeis-me agora?
Ai as mulheres! As flores damas. A preta finge de loura, a velha finge de moça, a pobre finge de rica, a casada vem ao circo para dizer mal do marido ao amante, a mãe vendeu a filha, a filha se concedeu, a abandonada contou todos os pecados do marido seu. E para serem belas, por detrás beijam elas o Satanás. Aquela casada com adorno, o marido é um corno. Aquela moça donzela trocou recadinhos e saiu com o ventre crescido, e para se livrar do acha que buscou certo abortinho. Ai anjos, neves e rosas, ai estrelas nacaradas, ai ninfas belas, ai combates dentro do meu peito! Entendeis-me agora?
Morrem de fome os lavradores, os que trabalham e os que tratam de ofícios. Aquele a quem deram cargos prometeu guardar direito, mas não segue este fio e por seus rodeios tortos é um confuso labirinto. Honras, vidas e fazendas são perdidas por aquele falsário metido que nunca foi preso nem enforcado e anda com o rei na barriga. Contados são os que dão a seus escravos ensino, e muitos nem de comer, aquele senhor é um destes poucos, mas de noite às escravas pede o troco. Lá se vão os estudantes, bailes e pouco estudo, cabeçudo ignorante, isto é ser estudante. Os negros fugidos saem a cortar bolsas pelos caminhos e depois vão ao pelourinho receber açoite, que roubam pouco e de noite. Aquele fiscal quis ficar com a fazenda dos defuntos, que o ladrão mata a porcada e o fisco come os presuntos. O capitão dos soldados andou queimando o catruz e foi pego no beco de lava-rabos a comer cuscus. Um tiririca foi pego pelo bodum sem mal algum. Aquele avestruz ali tem toda a terra do país, e quem lhe queira um triz leva arcabuz. E vejo um poeta oculto na sombra da poesia, louco, tenebroso, estulto, correndo atrás da fama celebratória. Que história! Dogmatistas, pedinchões, patifes, ateístas, hipócritas, avarentos, asnos, gente que adora o dinheiro, idólatras falsos, lobos enfurecidos, assassinos, este o povo da cidade. Entendeis-me agora?
A mentira está na terra, a verdade vai fugindo, nesta cidade falta verdade, honra, vergonha, o povo se perdeu no negócio, na ambição, na usura, a Justiça é bastarda, vendida, injusta, a igreja pratica simonia, o açúcar acabou, o dinheiro se extinguiu, a Câmara, tão nobre por ver-se mísera e pobre, não pode, não quer, não vence, precisa aumentar seu soldo a rodo, e dar cargos e padrinhos aos sobrinhos, entendeis-me agora? Que atropelando a Justiça só com virtude postiça se premie o delinquente, castigando o inocente. Ai de ti, uma terra tão amena, tão fértil e tão fecunda a tornasse tão imunda falta de saúde, e pão. Toda a cidade sofre esta fome universal, uns dão culpa total à Câmara, outros à frota. Tratam de diminuir o dinheiro, que para a coisa baixar o melhor meio é subir. Na política de Estado nunca houve princípios certos. Entendeis-me agora? Triste Bahia! Oh quão dessemelhante estás, e estou do nosso antigo estado.

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