São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 1996
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Convite a um passeio alegre pela Bienal

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sempre que aparece alguma Bienal, a mesma polêmica se reacende: "Mas isso não é arte! É tudo farsa!". Falta pouco para as pessoas pedirem o dinheiro do ingresso de volta...
Acho que essa atitude está em declínio. Primeiro, porque o dinheiro do ingresso foi bem pago, pois se pôde ver uma exposição de Picasso, de Klee ou de Munch.
Mas o propósito polêmico da Bienal continua vivo. O próprio curador da exposição, Nelson Aguilar, declara que deseja ver as pessoas se interrogando: Isso é arte? Ou não é?
Proponho uma visita à Bienal que se esqueça um pouco dessa pergunta. Acho até que hoje em dia as pessoas que vão à Bienal deixaram de se interessar por isso.
O que é arte? O que não é? No fundo, a pergunta é desimportante. E poderia colocar-se em qualquer exposição de pintura acadêmica em pleno século 19.
Não ignoro as imensas bobagens, os pseudotalentos, os farsantes que ocupam espaço na Bienal. Mas será que era diferente no século 19? Quantos artistas, num salão acadêmico de pintura em Paris, eram farsantes? A pseudoarte é universal e eterna.
Mesmo num museu de arte consagrado -o Louvre, a Altepinathokek de Munique, por exemplo- iremos topar com algumas coisas, uma natureza-morta holandesa, por que não? Gansos depenados em cima de tachos de cobre, cachos de uva derramados em cima do cadáver de codornas -que "não nos dizem nada". Paisagens escuras de holandeses, vasos de flores vermelhas com uma mosquinha em volta -quanto dessa arte ocupa alegremente as salas de museus na Europa, que não nos desperta nenhuma emoção estética?
Imagine-se então um daqueles famosos salões de arte no século 19. O que havia de arte ali? Quadros idiotas, grandes cenas heróicas, paisagens chapadas, coroações de imperadores, ciganas sorridentes, deusas rechonchudas... tudo aquilo, arte acadêmica, foi esquecido e, afinal, "não era arte".
Foi esquecido. Mas, no momento em que essa bobajada foi exposta, não estava em voga a questão: "Será que isso é arte?" O tempo, a história encarregaram-se de responder. Não era, claro. Mas estava exposta.
Atualmente, está muito mais presente a questão: "Será que tudo isso é arte?" Mas sugiro que se vá à Bienal sem pensar nessa pergunta.
É uma pergunta que só interessa aos críticos. E aos artistas, que ligam muito para o que se escreve a respeito deles.
A Bienal é o contrário disso. É exatamente o lugar onde o público, ignorante, ocioso, infantil, passeia. Passeia como se estivesse num shopping center. Não dedica mais de um minuto a qualquer obra exposta. E é como se cada obra exposta soubesse disso.
Não é nada mau passear por tantas obras como um consumidor comum de shopping center. Esqueça a questão "Mas isso é arte?" e simplesmente veja o que tem diante dos olhos.
Quanto mais ignorante você for, melhor. Veja, por exemplo, o buraco vermelho que Anish Kapoor furou na parede do segundo andar. Será que é um buraco mesmo ou simples ilusão de ótica? O corpo do espectador se desloca, o olho procura resposta e não encontra nada.
Entre na sala escura, na instalação misteriosa de Artur Barrio, no andar térreo. Tudo estará escuro, você pisará sobre uma camada de sal grosso, que estala a cada passo. Dali a pouco, você entra no ambiente. Lá, no meio do escuro, iluminado mal e mal, você verá uma coisa, uma surpresa. Não direi o que é. Digo só que é arte, sim.
Claro que estamos num momento em que a cenografia, o susto de trem fantasma, o trocadilho, como diz Otavio Frias Filho em seu artigo de quinta-feira passada, assumem o papel de "obra de arte". Abre-se espaço para um monte de bobagens, como sempre.
Mas o problema de definir o que seja obra de arte é puramente acadêmico. Claro que é dificílimo. Claro que uma obra de arte não se define pelo escândalo que produz.
Mas será que há escândalo na Bienal? Será que é majoritária a atitude dos que, bufando, reclamam de "não ser arte" aquilo que vêem? O espectador médio da Bienal, sem nenhuma informação crítica, talvez procure apenas a fruição imediata, a surpresa, o encanto, o mistério que eu mesmo encontrei em algumas instalações e esculturas. Não por acaso, as crianças adoram bienais. O crítico de arte está às voltas com outra coisa: identificar o caráter revolucionário, inovador, disso ou daquilo.
Comporto-me como o espectador comum, que está em busca de fruição, de estímulo passageiro, de beleza quebradiça, exposta aos ventos temporais. Como um passeante de shopping, vejo por dez segundos as torções maravilhosas de Tomie Ohtake, os efeitismos infantis de Jesus Soto, os abismos artificiais de Anish Kapoor, a piada besta do húngaro que pôs um porco vendo televisão.
Tudo é passageiro e nada é revolucionário. A crítica é que inventa revoluções e nomes novos a cada cinco anos. Com todas as besteiras, saio eufórico da Bienal. Não perguntei se aquilo era arte ou não. Encantei-me, apenas, com Mestre Didi, com Louise Bourgeois, com a argentina Graciela Sacco.
Estúpido, e pouco crítico, passei pela Bienal como algum consumidor afortunado que entra num shopping. Ele tem todo aquele universo a ser consumido, tem uns caraminguás guardados no banco ou à disposição no cartão de crédito. Não vai gastar nada: mas se encanta com a gratuidade das vitrines.
Essa atitude, a de quem está pronto a consumir, mas não consome, de quem está fruindo à toa, mas não sabe como possuir a obra que tem diante dos olhos -ninfa apetitosa, cacho de uvas, bolo de chocolate-, não é nada moderna.
É precisamente a distância, a irrealidade, a "desmaterialização" que toda obra de arte sempre exerceu sobre o vulgar desejo humano. Consumir sem consumir: isso é o shopping da Bienal, isso é a teoria kantiana da arte. Kant pensava o "artístico" como algo que, sendo consumível, era inconsumível; como uma infinita aspiração ao gozo, como a espiritualização do que se anseia na vida.
Essa mistura de espiritualização e de sensualidade, de efeito e de conceito, está presente nas obras da Bienal. Nem sempre as duas coisas andam juntas.
Mas saio da exposição com euforia -o que é sintoma de desejo ao mesmo tempo realizado e insatisfeito- e sem dúvidas conceituais. É arte? Não é? Que diferença faz, vendo Mestre Didi? Estou mais crítico, mais alegre, mais apto a viver no mundo...
A Bienal fez isso por mim: ajuda-me, numa euforia, por certo passageira, a viver. Então é arte. Mas definições não importam. Ou melhor, importam, sim, e ainda voltarei ao assunto; só não importam para quem está passeando alegremente pela Bienal, e é a isso que convido o leitor.

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