São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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Pierre Boulez se prova poeta maior

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os concertos foram tão bonitos que escrever sobre eles é quase uma profanação. Não há muitos recursos na língua, exceto a hipérbole, para descrever essas apresentações do Ensemble InterContemporain, sob a regência de Pierre Boulez, segunda e terça-feira passadas no Cultura Artística.
O Ensemble é, provavelmente, o melhor conjunto de musica contemporânea em atividade; mas pode-se ir mais longe: é simplesmente uma das melhores orquestras de câmara, sem distinção de gênero ou período. Tem em Pierre Boulez um regente à altura de seus músicos, que da sua parte são músicos à altura de Pierre Boulez.
Foram tantos momentos de excelência que é difícil destacar algum. No centro do programa da primeira noite estava o "Concerto para Piano" (1988) de Gyorgy Ligeti, sem nenhuma hipérbole uma das peças definitivas da segunda metade do século.
"Ligetiana não funciona como adjetivo, o que é um problema, porque ficamos sem uma palavra para essa qualidade da experiência, que cada um de nós vai descobrir na música. É um dos raros autores da atualidade capazes de escrever música alegre. Mas também escreve (como no segundo movimento) uma impressionante música noturna, um assombramento de sopros -pícolo, ocarinas, flauta de êmbolo e harmônica- combinados a uma orquestra única, um sonho estranho da música noturna de Bartók.
Ninguém como Ligeti escreve os ritmos cruzados do piano no "Concerto", apropriação exuberante das polimetrias africanas e da música para pianola de Nancarrow, num contexto todo seu.
O solista Dmitri Vassilakis tem dez dedos em cada mão, o que deve ajudar, mas sua interpretação é uma façanha. O mais impressionante é que ele não é o único, nem o maior pianista do conjunto.
Essa honra fica reservada para Florent Bottard, que praticamente roubou a "Suíte Op. 29" de Schoenberg para si, na segunda; e na noite seguinte salvou a alma da cidade de São Paulo por algum tempo, solando os "Orseaux Exotiques" de Messiaen.
Schoenberg e Messiaen são compositores diferentes, traduzidos pelo Ensemble nas mãos de Boulez: explosão das formas na "Suíte", como uma música que tem música demais dentro de si; e formas celebratórias da explosão em Messiaen, numa alucinação feliz.
Um Webern lírico, com a melodia de timbres levada a um nível de execução que faz pensar em transições controladas por computador; Varese, o terrível, o bruxo, o compositor que não tem medo de nada, escrevendo na década de 20 essa música que é irmã espiritual das máscaras africanas de Picasso e que serviu para mostrar o que valem os metais de Philip Manoury reescrevendo agora o bruxo com os acentos de quem vê isto à distância; a encantatória "Silbury Air" (1977), de Birtwistle, espécie de ritual em música, repetindo seu mapa de pulsos numa caminhada sonambulesca; cada uma deles seria assunto para uma resenha.
Resta salientar, com o devido peso, as estréias brasileiras de duas pequenas composições do próprio Boulez, "Dérives" 1 e 2 (1990/96).
São parte de um projeto em curso, um diário musical, em que o compositor vai comentando, musicalmente, a composição de outras obras.
"Derive 2" é um andante "à deriva", gradualmente se transformando em tocata ("derivada" de "Répons"), com o conjunto inteiro em ritmos iguais e uma força compulsiva de movimento, que é tanto para frente e para fora quanto para dentro de nós, ou seja, no desconhecido.
"Derive 1", em versão revisada deste ano, é, pelo contrário, música de estase ou expectativa, um trinado suspenso, sem resolução, passando de um instrumento a outro e colorida pela permuta contínua de seis acordes. São as harmonias mais lindas da música européia, a serviço de um de seus maiores poetas, que é o nome certo para um compositor, quando adjetiva o mundo e assina "eu".
Quando é tocada nesse nível -e está de fato à altura da consideração desses músicos-, a música contemporânea empolga até o ouvinte mais preguiçoso.
Ovacionado pela platéia, Boulez se manteve, como sempre, discreto, modesto. E ao lado dos músicos: não há um lugar melhor, quando já se está à frente de qualquer um, e o mundo inteiro cabe na palma de um compasso.

Concerto: Pierre Boulez e Ensemble InterContemporain
Onde: Teatro Municipal do Rio (tels. 021/220-3648 e 297-4411)
Quando: Hoje, às 21h

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