São Paulo, sábado, 26 de outubro de 1996
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Eizo Sugawa compõe conto do amor louco

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O Japão do fim dos anos 50, quando Eizo Sugawa dirigiu seus primeiros filmes, certamente não é o mesmo de "Raros Sonhos Flutuantes" (1990), seu último filme até aqui.
O protagonista de "Desafio à Vida" (exibido ontem na Mostra), por exemplo, está mergulhado até a medula no inferno de uma guerra perdida. Já o personagem central de "Raros Sonhos" vive em uma nação prodigiosamente rica.
Sugawa, nascido em 1930, é um homem formado na guerra e no pós-guerra. Assim, deixa marcas da continuidade entre o tom agônico do passado e o presente. Em "Raros Sonhos", por exemplo, o protagonista, Shuji, é um executivo rebaixado.
Logo no início, Shuji, é internado num hospital. Como o hospital está lotado, ele divide o quarto com uma paciente, Matsuko.
Separados por um biombo, sem se verem, começam a conversar. O diálogo deriva para a poesia. Daí, para o amor. Sem nunca se verem, apenas com suas vozes, Shuji e Matsuko protagonizam um ato amoroso integral.
No dia seguinte, Shuji entrevê Matsuko, uma provecta senhora de 67 anos, que logo deixa o quarto. Mas o vínculo entre os dois está criado. Ao sair do hospital, ele procura a mulher durante meses.
Quando a reencontra, Matsuko tem apenas 40 anos e Shuji fica sabendo que ela sofre de uma estranha síndrome que a leva a perder idade, ao contrário dos outros mortais.
O tom está dado: qualquer espectador sabe, desde então, que está frente a uma das mais delirantes histórias de amor já contadas.
Não será indiscrição dizer que é um amor impossível, pois, se Sugawa mitigou o niilismo do passado, foi em troca de um sentimento de serena infelicidade.
Talvez todos tenham vivido, em algum momento, uma história de amor, em que um encontro anunciado, previsível, transforma-se em desencontro. Isso não basta a Sugawa: é preciso ainda que a imperfeição do desencontro seja colossal, hiperbólica, perfeita.
Se não fosse assim, Eizo Sugawa teria se transformado, na maturidade, num mero carbono de seu mestre Mikio Naruse.
Não é o caso. A poesia de Sugawa continua rude e múltipla como antes. O fracassado Izaki, de "Desafio à Vida", que não consegue sequer se suicidar, não é afinal tão diferente do Shuji de "Raros Sonhos". Para ambos, a vida se reveste de uma impossibilidade transbordante.
A diferença é que, em 61, Izaki vivia a vida como um pesadelo voltado para o passado, e, em 90, Shuji a vislumbra como sonho, como amor louco, transgressivo. Em 61, o passado se avolumava, quase monstruoso. Em 1990, o futuro se apequena assombrosamente. Sugawa continua um poeta sombrio.

Filme: Raros Sonhos Flutuantes
Quando: hoje, às 19h, no Masp

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