São Paulo, sábado, 26 de outubro de 1996
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Desvio na democracia

GERALDO BRINDEIRO

Nestas importantes eleições municipais de 1996, em que foi introduzido no país o voto eletrônico, causando grande sensação e entusiasmo do eleitorado em participar e votar, houve redução significativa de possibilidades de fraude e dos índices históricos de votos em branco e nulos. A nova democracia brasileira se fortalece às vésperas do terceiro milênio.
Não se pode deixar de admitir, todavia, que a vontade popular manifestada por meio de votos em branco e nulos constitui manifestação válida da vontade política do eleitor, expressão dos seus direitos políticos e da soberania popular assegurados pela Constituição.
Não há como falar, em nenhuma hipótese, de "manifestação inválida de vontade" ou de "liberdade imprestável", como pretendem alguns. A liberdade -expressão maior da dignidade humana- é, por definição, autônoma, independente, existe por si só e com os riscos a ela inerentes. Os valores por ela escolhidos dependem exclusivamente da vontade do seu titular.
Admito, sim, a possibilidade teórica de distinguir sufrágio de voto, considerando o primeiro o direito e o segundo a forma de exercê-lo. Mas isso, a meu ver, não implica dizer que voto em branco ou voto nulo é não-sufrágio. Se sufrágio é direito político e implica liberdade de voto assegurada pela Constituição, tal liberdade permite optar pelo voto em branco ou nulo.
É preciso, ainda, enfatizar que o voto tem valor igual para todos os cidadãos, inclusive os que desejam manifestar seu desinteresse pelo processo político ou forma de protesto pela inaceitação dos candidatos, admitindo livremente as consequências eleitorais daí resultantes (Constituição Federal, artigo 14). Vale lembrar aqui, a propósito, a famosa decisão da Suprema Corte americana traduzida na expressão "one man, one vote" (vide "Historic Decisions of the Supreme Court", Carl Brent Swisher, 1958).
A apologia do voto nulo, porém, constitui, sem dúvida, distorção ou desvio numa democracia representativa que deve ser participativa e construtiva. Revela desorientação diante da fragmentação partidária e indisciplina pela insuficiente prática democrática. É, assim, deletéria ao Estado Democrático de Direito. Somente se constrói e se consolida a democracia no país pela aceitação das "regras do jogo" a que se refere Norberto Bobbio, pela tolerância recíproca e pela convivência solidária e, sobretudo, pelo contínuo debate de idéias e de programas dos partidos políticos e dos candidatos, submetendo as alternativas à decisão pelo voto participativo e válido da população, visando sempre à realização do bem comum.

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