São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os amigos e a crise

ROBERTO CAMPOS

"Livre-me Deus dos amigos, porque dos inimigos me livro eu..."
Napoleão Bonaparte
Os financistas internacionais revelam frequentemente visão enviesada. O México, por exemplo, tinha até a recente crise uma imagem melhor do que merecia; e a realidade brasileira era melhor do que parecia. A retórica reformista do vizinho do norte era mais eloquente. Mas seu progresso político, menor que o nosso. E seu realismo econômico, intermitente...
Apesar de observador experimentado e cético, eu próprio sobreestimei o reformismo mexicano. Sabe-se agora que nosso irmão do norte está longe de abandonar seus mitos estatizantes. Apesar da crise fiscal e cambial, suspendeu a privatização da petroquímica, que geraria um lucro patrimonial, aumentaria a eficiência e atrairia mais capitais privados. Tudo em nome do clientelismo estatal, disfarçado de nacionalismo. A lógica econômica exigiria precisamente o contrário: privatizar o monopólio petrolífero da Pemex, o que permitiria liquidar boa parte das dívidas interna e externa. Restaurada a credibilidade do país, estariam criadas condições para a retomada do crescimento. E o governo continuaria sócio oculto da empresa, através do imposto de renda...
A magia do petróleo é coisa dificilmente explicável. Sem uma gota de petróleo, Japão, Alemanha e Suíça figuram entre os países mais ricos do mundo. A superabundância de petróleo pode ser uma receita de desastre, independentemente de raça, cor ou continente. A Rússia na Europa, a Venezuela na América Latina, a Nigéria na África são exemplos de ricos-pobres. Ricos em petróleo, pobres de divisas, com economias de baixo crescimento.
A Petrossauro se vangloria de ter investido até hoje US$ 82 bilhões, economizando 6 bilhões anuais de petróleo importado. Não é um investimento de retorno grandioso, se nos lembrarmos que a indústria automobilística, toda de capitais privados, ao produzir este ano 1,7 milhão de veículos, nos trará uma economia líquida de divisas de pelo menos US$ 25 bilhões!
A imagem externa brasileira melhorou significativamente depois do Plano Real, conquanto na percepção dos investidores continuemos sendo um país de alto risco. Na classificação dos mercados emergentes da revista "The Economist" (edição de set. 13), seríamos o quinto maior risco do mundo, superados apenas pela Rússia, México, Argentina e Venezuela. Alguns países que habitualmente não associamos à idéia de solidez econômica, como Grécia, Filipinas, Índia, Indonésia ou Colômbia, são julgados pelos mercados financeiros, estranhamente, de menor risco que o Brasil. Nossa imagem começava a ser purificada, em vista do impacto favorável da queda da inflação e do aumento das reservas cambiais, a ponto de voltarmos a atrair investimentos diretos permanentes e não apenas capitais financeiros mais voláteis. Mas agora surgem novas perturbações. De um lado, a persistência de um grave déficit global no setor público. Este, principalmente devido à crise fiscal nos Estados, atingirá este ano cerca de 3,7% do PIB, quando se esperava que fosse reduzido para 2,5%. De outro, a balança comercial, que se esperava equilibrada, será deficitária em cerca de US$ 3 bilhões.
Os mercados se impressionam menos com as magnitudes precisas do momento, do que com as "tendências" e as "ações de mudanças". No plano fiscal, os indicadores de melhora seriam o corte efetivo de gastos e a aceleração de privatizações, pois se sabe que a reestruturação tributária num regime federativo é de difícil e lenta execução. No plano cambial, são importantes as medidas estruturais da redução do custo Brasil, visto que a solução tradicional das desvalorizações cambiais é uma espada de dois gumes. Reconheça-se o progresso feito na busca de soluções "estruturais" para a redução do custo Brasil: estamos afinal destributando as exportações; a privatização e o arrendamento de portos estão na agenda do dia; e a privatização da infra-estrutura de rodovias e ferrovias trará melhorias de eficiência e redução de custos.
Surgem, outrossim, indícios de um "neo-realismo". Protestamos internacionalmente contra a rigidez dos critérios do FMI, com suas "condicionalidades" e metas de desempenho fiscal. Mas na renegociação da dívida dos Estados estamos "internalizando" o FMI, ao exigir provas de austeridade nos gastos e reforma patrimonial, destinadas a corrigir a "cultura do calote".
Uma ironia da história é que muitas das dificuldades de FHC no saneamento financeiro provêem menos da oposição do que dos amigos da corte. Pelo menos duas coisas eram medianamente claras desde o início: 1) que os bancos estaduais -desnecessários em teoria e desastrosos na prática- tinham de ser privatizados ou liquidados, para não se tornarem fontes emissoras; 2) que, ante a impossibilidade de correção rápida dos enormes desequilíbrios fiscais, seria necessária uma solução patrimonial, vendendo-se megaativos para anular megapassivos.
Ora, que sucedeu? O amigo Covas dificultou a primeira solução, ao insistir em manter o Banespa estatal. Isso enfraqueceu a equipe econômica face aos demais governos e bancos estaduais. O amigo "Serjão" emperrou a segunda. Imaginava-se que a privatização das telecomunicações fosse a mais fácil, rápida e rentável para o governo, trazendo receitas que aliviariam a crise fiscal. O contrário aconteceu. Para surpresa nacional e internacional, ferrovias e rodovias, que pareciam invendáveis, estão sendo privatizadas, enquanto que o setor dinâmico de telecomunicações continua escravizado à modorra burocrática do Ministério das Comunicações e aos interesses corporativistas da Telessauro e da Embratel. Nem sequer um edital de licitação foi publicado. O sentido de prioridades é bizarro. Investe-se pouco na telefonia básica, nada na telefonia rural e muito na telefonia celular urbana, com tecnologia analógica hoje superada pela digital. Esvazia-se assim o espaço que poderia ser ocupado pela iniciativa privada; não entra caixa para o Tesouro e mantêm-se as dezenas de diretorias da Telessauro, que são cobiçadas por políticos fisiológicos, disponíveis para engrossar a tese da reeleição.
O balanço de dois anos da gestão FHC nesse setor é melancólico, cobrindo a economia de um véu de ineficiência. Só foi aprovada uma "lei mínima", que abre apenas a telefonia celular móvel (a celular fixa, que poderia baratear a telefonia rural e suburbana, continuará nas mãos da Telessauro...).
Napoleão tinha razão ao pedir a Deus a proteção contra os amigos.

Texto Anterior: Duelo original
Próximo Texto: Infecção mata 32 bebês em Roraima
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.