São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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Dos ponteiros do relógio até seu mecanismo

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A nova crítica surgiu no Brasil como surgem as religiões e morreu como morrem as modas. Teve em Afrânio Coutinho o seu apóstolo, na "Teoria da Literatura" de Wellek e Warren a sua vulgata, na análise imanente o seu dogma, no "close reading" a sua liturgia e no impressionismo o seu diabo privativo. Todavia, vocacionados mais para a teologia dos métodos que para a ascese da análise, os fiéis da nova religião não cuidaram quase do deslinde e avaliação de textos literários propriamente ditos. Preferiram ater-se, as mais das vezes, à glosa de generalidades respigadas em suas fontes anglo-americanas. A rapidez com que, a partir dos anos 60, o estruturalismo foi-se substituindo a nova crítica mostrou que a religião se havia amesquinhado em simples moda metodológica, descartável como todas as modas.
O melhor saldo que a moda neocrítica deixou de sua passagem foi o consenso acaciano de os métodos valerem menos por si do que pelos resultados da sua aplicação. A qualidade desta, por sua vez, está na razão direta da qualidade do aplicador. É o que pode ser visto nos ensaios de Othon Moacyr Garcia, em boa hora repostos em circulação pela Topbooks, editora à qual o ensaísmo brasileiro fica devendo um empenho no mínimo alvissareiro.
"Esfinge Clara e Outros Enigmas" é das melhores coisas que a técnica do "close reading" e da análise estilística produziu entre nós. Recomenda-se inclusive pela circunstância de os estudos nele enfeixados estarem todos voltados para obras de poetas brasileiros -Carlos Drummond de Andrade, Gonçalves Dias, Augusto Meyer, João Cabral de Melo Neto, Raul Bopp e Cecília Meireles.
Se me pedissem para resumir, numa frase, o tipo de crítica a que Othon Moacyr Garcia se aplica, eu diria que se trata de uma crítica por itálicos. Durante a leitura do texto poético, o lápis do crítico vai nele sublinhando as ocorrências verbais que lhe afigurem mais características e mais significativas dele, texto, e de seu respectivo autor. Esse levantamento seletivo, por cuja maior ou menor pertinência se pode aferir o mérito da visão analítica, possibilita ao analista ir além dos dois ponteiros até as entranhas do relógio, para ali examinar de perto e entender "o milagre e o engenho do seu movimento sincrônico".
A imagem relojoeira é de próprio Othon Moacyr Garcia a certa altura do seu estudo acerca da técnica de palavra-puxa-palavra, que ele vê como a marca de fábrica da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Por meio de associações analógicas, o poeta alcança revivificar, enriquecendo-a de novos matizes, a semântica de "frases-feitas, imagens estereotipadas e resíduos de leitura". É o que o autor de "Esfinge Clara" cuida de mostrar em peças das várias fases da trajetória de Drummond, por meio de análises que ajudam o leitor a compreendê-las melhor e lhe estimulam a imaginação a ir ainda mais adiante.
Nas citações de poemas com que ilustra suas considerações, Othon Moacyr Garcia costuma assinalar-lhe em itálico as palavras-chaves ou elementos catalisadores ou signos de indício ou motivos de fixação ou referentes ou idéias-teses e idéias-temas. Esse leque de designações remete para um mesmo programa de análise estilístico-literária assim resumido por Leo Spitzer: "Se se reúnem várias dessas observações linguísticas, será certamente possível reduzi-las a um denominador comum e determinar então sua relação com o psíquico (...) com a arquitetura da obra, com seu processo de elaboração e até com a visão de mundo que lhe seja própria".
Esta citação aparece no curso de uma análise da poesia de Gonçalves Dias em que Othon Moacyr se aplica a levantar-lhe todos os "referentes ígneos e luminosos". A frequência desses referentes estaria ligado ao sentimento de exílio de que o poeta foi o celebrante por excelência entre nós e apontaria para uma nostálgica recuperação visual, à distância, da natureza ensolarada da pátria. Recuperação feita, porém, por meio de imagens repetitivas, aliciadas por uma emoção "monocórdia", e inquinada por uma "infrequência do inesperado" que a torna pouco palatável ao gosto do leitor moderno. Eis, assim, a análise estilística completando-se com um empenho de exegese e avaliação crítica sem o qual ela não ultrapassaria o "estreitismo estatístico e enumerativo".
Em "O Deserto e a Página em Branco", estudo de 1958, Othon Moacyr Garcia levanta pioneiramente núcleos metafóricos e simbólicos cuja iteração lhe possibilita mapear pioneiramente as características da poesia de João Cabral de Melo Neto, com sua engenharia compositiva à Valéry, em que o concreto está a serviço da representação do abstrato, e o horror à vagueza busca a precisão e a nitidez visual para com elas figurar o silêncio das coisas. Que é um modelo do silêncio prenhe de significações a que aspira o objetivismo da própria poesia cabralina.
No ensaio sobre a mítica em "Cobra Norato", Othon Moacyr Garcia recorre aos conceitos de idéia-tese e idéia-tema para ilustrar como a tese do programa primitivista da antropofagia, de criar um Brasil anti-Europa, livre da macaqueação de tradições clássicas já cediças, vai-se corporificar poeticamente, ao longo do poema maior de Raul Bopp, no tema de uma animização da selva amazônica que encarece a "criação ou gestação de um mundo novo, renascido e inocente, de uma arte nova, de um Brasil novo do ponto de vista cultural". Por fim, no ensaio final de "Esfinge Clara e Outros Enigmas", o ensaísta se compraz em analisar um breve poema de Cecília Meireles pelo prisma de considerações numerológicas no mínimo perspicazes e sedutoras.
Ao chegar a essas páginas de encerramento, o leitor mais sensível já não terá por que deixar de endossar, de alma leve, o que Antonio Houaiss dissera no prefácio do livro: "Othon Moacyr Garcia exerce uma crítica literária cujas virtudes são realçadas pela riqueza empírica do exemplário, pela acuidade da análise, pela organicidade da interpretação e pela sensibilidade e intuições estéticas, que o singularizam no gênero entre nós".

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