São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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O homem de nenhures

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma falena preta, negrejante, abre asas em trapézio e borboleteia: dança. Está nua, e o triângulo de terciopelo entre suas coxas móveis (ela dança) replica, em miniatura, às asas trapezoidais do vestido alçado. Ela dança, Carmen Miranda cambaleante, ao ritmo de um samba de Chico Buarque cantado na língua nórdica de Ingmar Bergman. Das velaturas vocálicas e das angulosas consoantes do sueco emerge, aos poucos reconhecível, um refrão familiar: "Canta samba Brasil!", ligeiramente "estranhado" pelo sotaque. Ao fundo da cena, em azul e branco, nuvens sobre céu, um telão radiante corta o escuro do palco. Compõe uma paisagem à Magritte e à Duchamp. Com cinco latrinas brancas enfileiradas como esculturas vacantes. Cinco retretas que sinalizam aqueles mallarmeanos "lugares absolutos" (na fala comum e nos grafitos dos lavabos públicos, "lugares solitários"...). Cinco viúvas sedentárias, porcelanizadas, prenhes do mistério freudiano, grávidas do (agora não mais retido) ouro fecal. Três enfermeiros e duas nurses, todos vestidos de branco hospitalar, acabaram de fazer escoar, para o mais profundo fundo dessas higiênicas tubulações hidráulicas, sua propiciatória (e demasiadamente humana) oferenda aos deuses inferiores, num ritual não mais que metaforizado, em fundo de cena.
Um bebê gigante (Luiz Damasceno), um macroneném, avermelhado ainda do sangue parturial -acabara de sair de um útero borrachosamente complacente, hiante buraco púrpura perfurado no tampo de uma mesa rococó (escrivaninha de dramaturgo? távola filosofal? berço de embalar neonatos e tálamo para a cópula conjugal dos genitores?). Acabara de nascer e/ou renascer. Não muito antes, por falar em Magritte, havia desfilado contra um friso gris, um rodapé de fundo de cena, uma severa silhueta de guarda-chuva, enquanto uma fogosa dama de amarelo-canário (Raquel Rizzi), emperiquitada sobre saltos altos da mesma cor, se esforça por barganhar a mesa-totem com um magote cochichante de compradoras potenciais, na tentativa desesperada de salvar da ruína as falidas contas domésticas...
Aparentemente, essa mercadejante matrona é a mãe-esposa do bebê nu e sangrento (diretamente extraído de uma tela de Francis Bacon) e se reveza nessa posição com a falena dançarina (Milena Milena), agora de branco vaporoso, com manchas sanguinolentas no vestido de noiva, abandonada sobre a mesa-cama, cabeça, cabelos e um braço pendentes, uma figura finissecular de bela-adormecida, recém-saída do pincel pré-rafaelita de Dante Gabriel Rossetti ou de seu colega Burne-Jones.
Estou tentando recapturar em palavras alguns dos mais fascinantes momentos ("cenogramas") de "Nowhere Man" e dou especial destaque à cena final, misto de balé mortuário e rito de ressurreição, em ritmo de samba sueco-tropical. Já havia visto no Rio a nova peça de Gerald Thomas, mas uma falha de computarização prejudicara naquela ocasião a estudada iluminação de cena. Revê-la agora, no Sesc da rua Clélia (Lapa), deu-me a possibilidade de avaliá-la mais completamente.
Mas não somente pela sedução da visualidade (arte na qual é mestre) prende-nos Gerald Thomas nesse seu novo espetáculo. Nele se acentua um traço sempre rastreável na dramaturgia geraldiana: o cômico, a farpa irônica, o farsesco levado até a auto-ironia.
O macrobebê edipiano é também um "trombone" (como se diz em gíria teatral italiana), um ator canastrão (a exemplo do Hamm de Beckett), atônito e agônico, aguilhoado pela consciência crítica e atormentado pelos aplausos (platéia de pé!) que recebe quando menos espera, ou seja, quando lhe parece evidente ter fracassado monumentalmente em seu desempenho. O "mundo às avessas" quevediano (e hegeliano) se instala em cena. E o perplexo ator ora se metamorfoseia -destino de filósofo cínico?- no cachorro domesticado de "Quincas Borba" de Machado de Assis, para melhor fugir de tudo e de todos, ora se divide, derrisório e vaníloquo, entre Fausto e Mefisto. Ambos, no fundo, uma só personagem em duas "personae" complementares, mefistofáusticas: "die Faust", o "punho" em alemão; "the fist", o "punho" em inglês, não por mera coincidência as duas línguas de Thomas, além do seu português-brasileiro, de menino carioca crescido sob a asa instigante de um parangolé monocromático de Hélio Oiticica.
A acentuação do veio cômico (ou da veia histriônica) no teatro geraldiano, que vem sendo ressaltada pela crítica desde a primeira apresentação da nova peça no último Festival de Teatro de Curitiba, provoca risadas na platéia. Descontrai-se e desreprime-se assim o público, levado à perplexidade pelas turbulências vermelhas que o diretor desencadeia em cena aberta, num jogo obsessivo de humor/amor/morte, no qual engaja o excelente elenco da Ópera Seca: estupenda performance de Damasceno, à cuja arte experimentada e arguta o espetáculo muito justamente é dedicado; frisantes desempenhos de Milena e Raquel, bem coadjuvadas por Ludovaldo e Marcos Azevedo.
No caso da escritura "grafocênica" de Gerald Thomas, dessa escritura que se escreve encenando-se, vale dizer, à medida mesma que se vai pondo em cena, em luz, em voz (as intervenções em "off" do diretor, como sempre, pontilham ironicamente o espetáculo), parece-me, cada vez mais, que à crítica cabe mais uma função propedêutica. Quero dizer, uma função de introduzir o espectador à singularidade "verbi-voco-visual" da peça, um papel de "aperitivo" (do latim, "aperire", "abrir"), de instigação a assistir o que só no palco se passa e se explica (de "ex-plicare", desdobrar). Muito mais do que uma tarefa exegética, que exija do crítico uma análise exaustiva de conteúdos, do fragmentário campo semântico desse teatro, cujos sentidos em dispersão -esfiapados, experimentais- muitas vezes não são claros nem mesmo para o próprio diretor-dramaturgo, tão perplexo com suas construções/desconstruções como os próprios atores que põe em cena (sem falar do desnorteado auditório).
É o valor que dou a estas anotações sumárias, registros impressionistas de pós-espetáculo. Que sirvam como uma calorosa recomendação aos frequentadores de teatro para a prática desse exercício de abertura mental e desfrute sensível que é presenciar o "Homem de Nenhures" (Nowhere Man) em suas aventuras e desventuras a-tópicas, de quem não foi a Portugal e perdeu assim mesmo o lugar. Já que, como profetizou o velho timoneiro náufrago Stefauno Malamado, nesse espaço lúdico de andanças e errâncias (ou vida, ou teatro) "nada terá tido (ou haverá de ter) lugar senão o lugar"...
Aproveito para assinalar que a montagem entre nós da nova peça do dramaturgo anglo-carioca-alemão ocorre exatamente no momento em que, com o apoio do departamento regional do Sesc, a "trintenária" Editora Perspectiva lança, em primoroso trabalho gráfico, "Um Encenador de Si Mesmo", ampla coletânea de ensaios de e sobre Gerald Thomas, volume criteriosamente organizado por Sílvia Fernandes e J. Guinsburg.

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