São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996 |
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O homem de nenhures
HAROLDO DE CAMPOS
Um bebê gigante (Luiz Damasceno), um macroneném, avermelhado ainda do sangue parturial -acabara de sair de um útero borrachosamente complacente, hiante buraco púrpura perfurado no tampo de uma mesa rococó (escrivaninha de dramaturgo? távola filosofal? berço de embalar neonatos e tálamo para a cópula conjugal dos genitores?). Acabara de nascer e/ou renascer. Não muito antes, por falar em Magritte, havia desfilado contra um friso gris, um rodapé de fundo de cena, uma severa silhueta de guarda-chuva, enquanto uma fogosa dama de amarelo-canário (Raquel Rizzi), emperiquitada sobre saltos altos da mesma cor, se esforça por barganhar a mesa-totem com um magote cochichante de compradoras potenciais, na tentativa desesperada de salvar da ruína as falidas contas domésticas... Aparentemente, essa mercadejante matrona é a mãe-esposa do bebê nu e sangrento (diretamente extraído de uma tela de Francis Bacon) e se reveza nessa posição com a falena dançarina (Milena Milena), agora de branco vaporoso, com manchas sanguinolentas no vestido de noiva, abandonada sobre a mesa-cama, cabeça, cabelos e um braço pendentes, uma figura finissecular de bela-adormecida, recém-saída do pincel pré-rafaelita de Dante Gabriel Rossetti ou de seu colega Burne-Jones. Estou tentando recapturar em palavras alguns dos mais fascinantes momentos ("cenogramas") de "Nowhere Man" e dou especial destaque à cena final, misto de balé mortuário e rito de ressurreição, em ritmo de samba sueco-tropical. Já havia visto no Rio a nova peça de Gerald Thomas, mas uma falha de computarização prejudicara naquela ocasião a estudada iluminação de cena. Revê-la agora, no Sesc da rua Clélia (Lapa), deu-me a possibilidade de avaliá-la mais completamente. Mas não somente pela sedução da visualidade (arte na qual é mestre) prende-nos Gerald Thomas nesse seu novo espetáculo. Nele se acentua um traço sempre rastreável na dramaturgia geraldiana: o cômico, a farpa irônica, o farsesco levado até a auto-ironia. O macrobebê edipiano é também um "trombone" (como se diz em gíria teatral italiana), um ator canastrão (a exemplo do Hamm de Beckett), atônito e agônico, aguilhoado pela consciência crítica e atormentado pelos aplausos (platéia de pé!) que recebe quando menos espera, ou seja, quando lhe parece evidente ter fracassado monumentalmente em seu desempenho. O "mundo às avessas" quevediano (e hegeliano) se instala em cena. E o perplexo ator ora se metamorfoseia -destino de filósofo cínico?- no cachorro domesticado de "Quincas Borba" de Machado de Assis, para melhor fugir de tudo e de todos, ora se divide, derrisório e vaníloquo, entre Fausto e Mefisto. Ambos, no fundo, uma só personagem em duas "personae" complementares, mefistofáusticas: "die Faust", o "punho" em alemão; "the fist", o "punho" em inglês, não por mera coincidência as duas línguas de Thomas, além do seu português-brasileiro, de menino carioca crescido sob a asa instigante de um parangolé monocromático de Hélio Oiticica. A acentuação do veio cômico (ou da veia histriônica) no teatro geraldiano, que vem sendo ressaltada pela crítica desde a primeira apresentação da nova peça no último Festival de Teatro de Curitiba, provoca risadas na platéia. Descontrai-se e desreprime-se assim o público, levado à perplexidade pelas turbulências vermelhas que o diretor desencadeia em cena aberta, num jogo obsessivo de humor/amor/morte, no qual engaja o excelente elenco da Ópera Seca: estupenda performance de Damasceno, à cuja arte experimentada e arguta o espetáculo muito justamente é dedicado; frisantes desempenhos de Milena e Raquel, bem coadjuvadas por Ludovaldo e Marcos Azevedo. No caso da escritura "grafocênica" de Gerald Thomas, dessa escritura que se escreve encenando-se, vale dizer, à medida mesma que se vai pondo em cena, em luz, em voz (as intervenções em "off" do diretor, como sempre, pontilham ironicamente o espetáculo), parece-me, cada vez mais, que à crítica cabe mais uma função propedêutica. Quero dizer, uma função de introduzir o espectador à singularidade "verbi-voco-visual" da peça, um papel de "aperitivo" (do latim, "aperire", "abrir"), de instigação a assistir o que só no palco se passa e se explica (de "ex-plicare", desdobrar). Muito mais do que uma tarefa exegética, que exija do crítico uma análise exaustiva de conteúdos, do fragmentário campo semântico desse teatro, cujos sentidos em dispersão -esfiapados, experimentais- muitas vezes não são claros nem mesmo para o próprio diretor-dramaturgo, tão perplexo com suas construções/desconstruções como os próprios atores que põe em cena (sem falar do desnorteado auditório). É o valor que dou a estas anotações sumárias, registros impressionistas de pós-espetáculo. Que sirvam como uma calorosa recomendação aos frequentadores de teatro para a prática desse exercício de abertura mental e desfrute sensível que é presenciar o "Homem de Nenhures" (Nowhere Man) em suas aventuras e desventuras a-tópicas, de quem não foi a Portugal e perdeu assim mesmo o lugar. Já que, como profetizou o velho timoneiro náufrago Stefauno Malamado, nesse espaço lúdico de andanças e errâncias (ou vida, ou teatro) "nada terá tido (ou haverá de ter) lugar senão o lugar"... Aproveito para assinalar que a montagem entre nós da nova peça do dramaturgo anglo-carioca-alemão ocorre exatamente no momento em que, com o apoio do departamento regional do Sesc, a "trintenária" Editora Perspectiva lança, em primoroso trabalho gráfico, "Um Encenador de Si Mesmo", ampla coletânea de ensaios de e sobre Gerald Thomas, volume criteriosamente organizado por Sílvia Fernandes e J. Guinsburg. 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