São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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Um exercício demorado e paciente

LORENZO MAMMI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já faz um certo tempo que Rodrigo Naves é um dos críticos mais influentes do país. Com ele aprendemos o rigor metodológico, que faz com que a reflexão crítica permaneça sempre arraigada à obra, sem pular etapas; e, ao mesmo tempo, aprendemos a necessidade de ligar a forma artística a questões mais amplas, colocar a obra numa rede de relações sociais, históricas, culturais que vão muito além dela, mas que só nela se revelam.
Não é fácil manter unidas essas duas exigências. Há sempre o risco de que, uma vez encontrado um significado cultural mais amplo, esse significado se cristalize num discurso à parte, esquemático, que dispensa a vivência da obra. Para preservar autonomia da experiência estética é necessário, ao contrário, se manter constantemente na fronteira entre arte e mundo, proceder em ziguezague, tateando o terreno a cada passo. Falar de arte se torna um exercício demorado e paciente.
Grandes críticos do modernismo, como Clement Greenberg e Giulio Carlo Argan, ensinaram a Rodrigo Naves essa paciência. Mas a arte brasileira demanda precauções suplementares, salientadas na introdução do livro, uma vez que, até os movimentos concreto e neoconcreto, não houve propriamente um projeto artístico brasileiro.
Em outros termos, a arte brasileira, antes da década de 50, não criou uma história, nem sedimentou tradições persistentes. Foi apenas uma série de experiências individuais, importantes às vezes, mas desligadas umas das outras. Essa indeterminação do ambiente artístico não é apenas uma falha. Ela se torna também um elemento constituinte das obras, um matiz expressivo que, paradoxalmente, as unifica ao longo do tempo.
Ficaria tentado em dizer que o que as define é justamente essa carência de definição originária, carência que se reflete nas determinações formais: na relações entre linha e cor, fundo e figura, matéria e forma. A formalização incerta e nebulosa, a forma difícil a que o título do livro se refere, desemboca, nos melhores artistas brasileiros, numa poética: afinal, a recusa em estabelecer uma demarcação nítida entre natureza e cultura, individual e público, afeto e razão é um traço que permeia toda a cultura brasileira, não apenas a arte. Possui um conteúdo utópico, embora seja uma utopia frágil, nada ideológica, docemente infantil.
Essa tese unifica os ensaios do livro. A maneira esquemática com que a apresentei, no entanto, está longe de dar conta da riqueza do texto. Na verdade, nada é genérico nas análises desse livro, nem o conceito de indefinição. A indeterminação muda de caso a caso, de obra a obra.
Naves acompanha o processo com que o estilo de Debret se deconstrói em suas obras brasileiras, englobando o tom evanescente e levemente amorfo da realidade que reproduz. Não é mero retrocesso: se as figuras populares das aquarelas brasileiras de Debret não possuem a dignidade daquelas que o artista retratou na Europa, também não se entregam completamente como aquelas, não se deixam reduzir a tipos. Mantêm a liberdade misteriosa de uma natureza que escapa à simbolização.
Algo semelhante acontece com Segall. A exasperação expressionista se torna inútil quando não há, do outro lado, uma estrutura social que resista a ela. Assim, o traço de Segall torna-se mais demorado, mais doce. As figuras se movimentam num espaço que não as rejeita, mas também não as recebe. Não se debatem, porque nada as prende. Estão perdidas. A paixão política deixa lugar, segundo a expressão de Rodrigo Naves, a uma compaixão. O gesto individualista do expressionismo absorve o outro numa espécie de solidão comum ao artista e ao seu objeto. Perde forças, mas também se torna menos violento.
Outros dois ensaios são dedicados a artistas que se situam no limiar da modernidade brasileira e que souberam como poucos explorar essa indeterminação formal para construir uma poética original: Guignard, cujas paisagens não criam ilusão perspectiva nem se reduzem ao plano, mas quase se desfazem num vapor que é tanto fundo quanto superfície; Volpi, para o qual a geometria construtiva não é conceito, mas objeto construído artesanalmente e desgastado pelo uso.
Finalmente, o último texto aborda a obra de Amilcar de Castro, que, para Rodrigo Naves, sinaliza a passagem a outra fase, refletindo uma situação cultural já mais complexa. Em Amilcar, como nos outros neoconcretos que o autor analisa nesse ensaio (Hélio Oiticica e Lígia Clark), existe uma vontade fundadora mais bem sucedida, um posicionamento mais nítido. Mesmo assim, esses artistas mantêm a dificuldade de formalização como um traço fundamental que deve ser questionado, não abolido. As estruturas de Oiticica e Lígia Clark são implosivas: apontam para a interioridade, não para a exteriorização. Os cortes e as dobras de Amilcar, apesar da energia que se despreende deles, contam com a resistência, a opacidade dos materiais. O ferro e as tintas de Amilcar se defendem pela inércia, como os escravos retratados por Debret.
O estilo crítico de "A Forma Difícil" me parece ter absorvido algo dessa inércia. Estabelece um corte, mas deixa que o material resista, mantém áreas de sombra. Isso é particularmente evidente na ampla introdução, em que o autor apresenta suas teses comentando artistas não incluídos nos ensaios. Apesar do parentesco evidente que interliga as obras citadas, o texto de Rodrigo não se cristaliza numa história da arte. Não há escolas a estabelecer, nem conceitos fundamentais a ser declarados. Cada observação sobre um artista revela sua vocação de uma monografia em miniatura.
Ao falar dos "castelos" de Milton Dacosta, por exemplo, Naves salienta como a grade de linhas ortogonais, retomada de Mondrian, muda completamente de sentido quando utilizada pelo artista carioca. Em Mondrian há um modelo de organização do espaço que pode ser expandido ao infinito e virtualmente abrange o mundo inteiro. Em Dacosta, uma subdivisão da superfície que vai na direção do infinitamente pequeno, referindo-se sempre a uma singularidade, nunca ao Universo.
Rodrigo Naves me parece reinterpretar a grade racional dos grandes críticos modernistas da mesma forma com que Milton Dacosta reinterpreta a grade visual de Mondrian; sua estrutura argumentativa renuncia à possibilidade de uma generalização, mas garante grande precisão na interpretação dos detalhes. A idéia de "forma difícil", de fato, não é algo que possa ser expandido com facilidade; não é um conceito nem uma poética, mas um diferencial, um resíduo que distingue muitas das obras produzidas no Brasil de suas parentes européias e norte-americanas. Reconhece-se mais facilmente numa linha ou numa cor do que na descrição de uma escola, de uma tendência ou de uma época. É uma escolha interpretativa preciosa, ao falar de uma arte como a brasileira, para a qual a classificação em escolas e tendências soa quase sempre rígida e exageradamente determinada.
É a primeira vez, que eu sabia, que se desenvolve um método de análise tão adequado à (e tão parecido com a) produção artística do país. Nisso está a grande sofisticação do livro e também, a meu ver, seu caráter de marco, "turning point". Poderá se discordar de suas conclusões, mas vai ser difícil, daqui para frente, falar de arte brasileira sem levá-lo em conta.

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